Capítulo 1 sem título

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Dedicado a quem já ostentou o título de mulher da minha vida

"Eu já entreguei meu coração

Alguém já me teve na palma da mão."

Motorocker

Pelas paredes do ambiente escuro do Inferno descia uma luz avermelhada, silhuetas sinistras perambulavam fundindo-se na penumbra, enquanto tocava uma música gótica, com um sussurro indefinido de fundo que dava tonteira na cabeça e a batida desconcentrava a gente. Um corpo colou-se ao meu e uma boca fria acariciou a pele sensível do meu pescoço.

Acordei com uma moleza desconfortável no corpo, zonzo, náusea e calafrios. Aos poucos fui reconhecendo a Praça da República ao meu redor, através de um véu de névoa algodoada da minha visão embaçada, e me lembrava vagamente de algo frio me tocando. Demorei a dar-me conta de que estava deitado em um banco de praça, com a cabeça nas coxas de uma moça com visual gótico, que fazia caracóis nos meus cabelos, enrolando mexas em seus dedos.

Meus olhos foram se acostumando à claridade leitosa da luz de um poste coada pela névoa, e vi melhor o seu rosto. Era bonita. Não, mentira; era linda. Branca; pálida na verdade, cabelos pretos, lisos, compridos e brilhantes, com a franja para a direita, olhos escuros por trás de óculos com armação preta oblonga, harmonizando com o queixo fino, rosto sério, boca pequena de lábios rosados e úmidos, nariz arrebitado e voz macia.

Maria Eduarda era o seu nome.

Ela me contou, com a voz como um eco aveludado vindo de longe, que tropeçou em alguém caído no caminho do banheiro na escuridão do Inferno Club e resolveu ajudar. Aos poucos fui me lembrando de onde estava antes, mas não entendi direito como saímos da Rua Augusta e fomos parar ali.

Ainda estava escuro quando a estação República do metrô abriu e ela me levou até em casa. As imagens velozes das pessoas sonolentamente apressadas rumo ao trabalho e o barulho vertiginoso dos trens rodopiavam distorcidos dentro da minha cabeça, as vozes pareciam de desenho animado e o chão macio, cheio de altos e baixos, sob meus pés dormentes desequilibrava-me, mas as mãos firmes dela me seguravam. Descemos escadas rolantes intermináveis até enfim entrarmos no trem.

Não me lembro de ter feito baldeação da linha vermelha para a azul na Sé, nem de ter andado da estação Santa Cruz até meu apartamento, mas acordei no começo da noite no sofá desconfortável da minha sala, com o pescoço doendo que só a porra.

Não sei por onde a Maria Eduarda saiu, porque a porta estava trancada e a chave pelo lado de dentro. Também não tive ânimo para pensar no assunto e nem para tirar a roupa que me incomodava, virei para o outro lado e dormi até o dia seguinte.

Com o pescoço duro, dor de cabeça que doía até o osso da caveira e uma moleza que não me dava disposição de fazer nada, eu estava de férias e tinha alguma pressa em aproveitar. O facebook me lembrou de que haveria o lançamento do livro de terror daquele autor famoso que eu gosto, cujo nome não me recordo agora, e tentei me animar. Tomei um banho quente, demorado e quase revigorante, comi três lanches bem recheados com restos de geladeira, vesti-me e saí ainda indisposto.

Assim que cheguei à calçada, emergindo das profundezas da estação Consolação do metrô, fiquei olhando de um lado para outro, tentando me lembrar de que lado ficava o Conjunto Nacional. Cores ofuscantes e barulhos urbanos assaltaram-me como se eu estivesse em outro mundo. Ouvi uma voz conhecida chamar por mim, talvez vinda do outro lado da Avenida Paulista, e alguém me sacudia, enquanto tudo ficava embaçado por uma névoa leitosa que esfriava meus pés e os borrões de luzes sonoras e sons brilhantes insistiam em fazer confusão dentro da minha cabeça, até que tudo parou.

MINHA EX-TRANHA NAMORADAWhere stories live. Discover now