Capítulo Único

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Ela tinha esse péssimo hábito de achar que não era notada

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Ela tinha esse péssimo hábito de achar que não era notada.

Parada em um canto, apoiada contra uma pilastra, eu tinha certeza de que ela imaginava estar acobertada pela escuridão que banhava o restante do auditório. Não estava. Podia ver, mesmo na penumbra, os cabelos escuros presos em um coque nada displicente que se movia ritmicamente conforme o tom que eu estabelecia. Eu era o pianista, mas, tendo aquela garota como minha única plateia, sentia-me o maestro da minha própria orquestra, ditando o ritmo com que seu tronco se movia com delicadeza e seus pés inquietos tamborilavam no chão, discretos, silenciosos, sem que o resto do seu corpo se movesse; como se em sua mente coreografasse uma dança que pertencia somente a ela, que quaisquer olhos estranhos estavam proibidos de assistir.

Nos fundos do amplo auditório onde eu ensaiava a peça da apresentação que potencialmente mudaria minha vida, atrás mesmo das últimas fileiras de cadeiras, a garota me encarava com atenção. Todos as noites. E, todas as noites, eu fingia que não a via. Não porque estava ignorando sua presença, mas porque me sentia na obrigação de respeitar sua tentativa falha de passar despercebida. Tarefa essa que eu me orgulhava de exercer com maestria. Até hoje.

Talvez porque fosse o último dia de ensaio antes da minha grande apresentação, que aconteceria no final de semana seguinte, e as chances de eu a ver novamente seriam reduzidas a uma improbabilidade cósmica de nos esbarrarmos na fila do cinema em uma quarta-feira à tarde, uma casualidade específica causada pelo fato de essa ser a única atividade social que me era permitida — não por proibições externas mais do que por restrições financeiras.

Talvez fosse porque, enquanto meus dedos acertavam as teclas do piano e a A tempestade preenchia o ambiente, ao invés de sentir orgulho por ter conseguido dominar uma peça clássica que exige uma técnica impecável, eu estava irritado. Não conseguia entender por que, mas a cada nota que eu produzia, uma insatisfação crescente tomava conta de mim. E eu queria, precisava, de alguma distração, algo que tirasse minha mente do vórtex que parecia sugá-la; e descobrir a história por trás daquela desconhecida misteriosa parecia uma ideia sedutora demais.

Então, quando dedilhei a última sequência de notas, quando afundei os dedos no último acorde, ao invés de voltar meus olhos para a primeira linha da partitura e repetir a sequência mais uma vez, estiquei as costas no banco e encarei o escuro.

— Gosta de Beethoven? — perguntei, estendendo a mão para alcançar uma garrafinha de água.

O silêncio pareceu se ampliar, como se ela prendesse a respiração e buscasse uma forma de se fazer ainda mais invisível. Um sorriso cresceu em meu rosto, e esperei.

— É isso que você está tocando? — A voz dela me alcançou, por fim, arrancando o sorriso dos meus lábios como se um soco houvesse sido desferido em mim.

Eu era movido à melodia, permeado por música, alimentado por notas desconexas que formavam a mais trágica das composições, mas aquela voz... A voz dela fez meus dedos formigarem com a vontade de virar dia e noite acordado, se preciso fosse, tentando encontrar a partitura perfeita que produzisse aquele som.

AllegrettoWhere stories live. Discover now