Letras sobre a pele

12 1 0
                                    

Há muito tempo, cerca de um milênio e meio, todos os habitantes de Ernas carregavam em suas peles as primeiras palavras que a pessoa destinada a si diria quando conversassem pela primeira vez.

Porém, com a explosão do reino de Calnat, em Arquimídia, as deusas decidiram que os habitantes de Ernas não mais mereciam aquela certeza de ter uma alguém destinado a você.

Então, com o passar dos séculos, cada vez menos pessoas iam nascendo predestinadas umas às outras. Aproximadamente 1000 anos após a decisão das deusas, não havia mais ninguém cuja pele marcasse palavras desde o nascimento.

As Almas Gêmeas estavam oficialmente extintas, e sua existência se tornou apenas uma história a ser contada para crianças de um vilarejo específico perdido em Arquimídia.

~♡~♡~♡~♡~

156 anos antes da extinção total das almas gêmeas, uma das últimas crianças com um parceiro predestinado nasceu, no Reino de Canaban. Era um garoto, nascido na família Sieghart.

Os livros existentes no Reino foram suficientes para fazê-lo entender a situação. Mas ele não queria saber de coisas impostas a si, desde muito cedo renegando as palavras, que sempre lhe soaram ríspidas demais - marcando um "E por que isso lhe interessa?" em uma caligrafia bonita no lado esquerdo do tórax -, e o posto que seria seu por direito, o de Capitão dos Cavaleiros Vermelhos.

Se casou muito cedo, mas mesmo que aquele fosse seu gesto de revolta contra as palavras em seu corpo, o casamento só lhe trouxe infelicidade, coisa que nem seus filhos conseguiram consertar. Amava as crianças, mas aquela não era a vida que queria para si.

Ele desistiu do casamento, desistiu dos Cavaleiros Vermelhos, e tomou caminho rumo à Arquimídia.

Lá, sofreu um ataque e foi salvo pelo grupo de Imortais, os Highlanders, que o transformaram em imortal também, mas tiveram sua existência extinta após um descuido seu.

Mas nem a transformação, que fizera seus cabelos ruivos se tornarem pretos como a noite, foi suficiente para tirar de si aquelas palavras que nunca deixariam se ser mal educadas. A frase continuava lá, intacta.

Vagou por Ernas, vagou por Portais Dimensionais, voltou para Ernas. Vasculhou cada canto possível daquele mundo, encontrou os mais diversos tipos de pessoas, enfrentou os mais idiotas inimigos, conheceu as mais belas lendas - inclusive aquela na qual estava incluso, mas odiava.

Com o tempo, as palavras perderam o sentido. Após 200 de seu nascimento, a pessoa que fora destinada a si já deveria estar morta, uma vez que já tinha confirmado que nenhum dos Highlanders era aquela pessoa. As lendas sempre falavam sobre as palavras sumirem após a outra pessoa falecer, e o guerreiro já desconfiava que a transformação para Imortal afetara naquilo - o que não fazia sentido, já que alguns dos outros já não tinham as palavras após a imortalidade.

Desistiu de entender aquilo, e passou a viver como se as palavras não lhe incomodassem, como se sequer existissem.

Quando se juntou à Grand Chase, e os banhos compartilhados se tornaram uma realidade constante em si, a necessidade de encontrar uma desculpa que calasse a boca dos rapazes se fez presente.

A ideia de tatuagem, que só existia em um vilarejo esquecido pelas deusas no litoral de Arquimídia, nunca lhe foi tão útil. O único problema era encontrar uma história que soasse convincente e fosse um bom motivo para ter aquela frase em seu corpo.

Encontrou uma história que pareceu satisfizera curiosidade dos outros rapazes -se as deusas quisessem, as meninas nunca veriam aquilo, uma vez que não dispensava a camisa ou uma tatuagem temporária que cobrisse as palavras.

Mas seu tempo de paz acabou muito cedo quando, após enfrentarem o deus dos Gigantes, ainda em Xênia, Mari entrou para o grupo. Nunca chegaram a trocar palavras diretamente entre si, mesmo que já tivesse concordado em ser objeto de pesquisa da tecnomaga.

Uma tarde, após finalmente conseguirem um lugar com água quente o bastante para que pudessem tomar banhos decentes, se aproximou do grupo das meninas, que conversavam alto e estridente - ou talvez essa fosse apenas Amy - sobre algo que parecia deixar Mari envergonhada.

-Meninas! - cumprimentou, com o mesmo sorriso debochado de sempre. - E então, qual a fofoca de hoje? E por que estão maltratando a novata? Poxa, Elesis, logo você fazendo parte disso? Eu não esperaria menos de uma descendente minha - riu alto, sentindo o olhar de Elesis queimar sobre si.

Oh, para uma Sieghart, ela era chata e séria demais.

-Estamos conversando sobre as palavras que Mari tem marcadas na pele dela!-Amy, a fofoqueira sem nenhum filtro, denunciou, e teria sido apenas uma informação comum, se aquilo não lhe fizesse sentir a área de suas próprias palavras formigar.

Aquilo era estranho, e ao olhar para a garota de cabelos azuis, a estranheza dela finalmente fez sentido.

"Eu sou Mari, a princesa de Calnat". Essas foram as palavras que ela usou ao se apresentar e... estava chocado com como era desatento! A princesa de Calnat! O Reino não existia mais há 1500, era óbvio que ela tinha uma alma gêmea.

Mesmo que a marca já não devesse maia existir depois de mais de um milênio e...

Suas sobrancelhas franziram ao se deparar com a possibilidade, e tinha certeza que nenhuma das garotas entendeu quando se agachou em frente a princesa e sorriu de um jeito doce pela primeira vez desde que entrara para o grupo.

- Qual é a sua história? - perguntou, e a julgar pelo modo como os olhos heterocromáticos se arregalaram para depois se estreitaram e os lábios crisparam antes de finalmente ouvir a voz séria e sem emoções, ela não gostara.

- E por que isso lhe interessa?

Um calor confortável se espalhou a partir de onde as palavras estavam, em seu peito. Sentiu um arrepio descer pela coluna e preferiu se levantar e se afastar um passo. Embora provavelmente as garotas entendessem aquele gesto como ele se sentindo ofendido por ter recebido aquela resposta, não tinha energia para fingir aquilo.

Sua alma gêmea estava na sua frente, e a julgar pelo modo como Mari se remexeu, inquieta, ela também sabia disso.

Recuperando sua pose, deu de ombros e se afastou mais um passo.

- Vamos conversar sobre isso depois, princesa - apesar do tom debochado, esperava que ela não se ofendesse ou achasse que ele não acreditava nela. - Muita coisa mudou nesses séculos, e acho que você precisa entender o que aconteceu enquanto você dormia.

Não ficou muito tempo após ver que ela concordara com a conversa. Arrumou o casaco sobre os ombros e saiu andando calmamente, sentindo o olhar de julgamento de Elesis e Arme, e de curiosidade de Lire e Amy sobre suas costas.

Bastava agora esperar que Mari não contasse sobre a origem das palavras para elas, caso contrário sua história para os garotos iria por água abaixo.

A Lenda das Almas GêmeasWhere stories live. Discover now