Capítulo 1

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Foi no mês de julho. As férias chegaram ansiosas, e com ela, a promessa de uma viagem à pequena cidade de Bambuí no Centro-Oeste Mineiro .Cercada pela Serra da Canastra, cheia de belas paisagens, cachoeiras e temperada pelo clima ameno e pelos quitutes e quitandas que se faziam por lá. Enchia-me de entusiasmo rever meus avós, já bem idosos, que moravam há anos em uma antiga casa cercada de árvores frutíferas e uma pequena plantação de amendoins silvestres que se espalhava rasteiro pelo imenso quintal da residência. Um riacho cristalino circundava a moradia e servia para abastecer a pequena propriedade rural, tornando a terra fértil e produtiva.

A avó Maria parecia um ser humano em miniatura, com seus 1,45  da mais pura doçura e amabilidade. Um pequeno milagre da vida do campo, menor que o cabo da enxada que segurava com firmeza, ao sair, ainda sob a luz da lua, a roçar com labor sua pequena horta. Nela, cultivava quiabos, repolhos e os mais belos tomates da região.

O avô Lúcio contrastava em altura pelos seus 1,90, o que fazia a avó Maria parecer uma anã perto dele. Sempre sério e contemplativo, nunca o vira sorrir, muito menos gargalhar, mas encarava com profundidade, fazendo o mais desinibido dos coronéis, baixar o olhar. Com apenas duas palavras conquistava o silêncio e o respeito dos maiorais da cidade, e nada era novidade para ele.

—Quando eu era pequeno, lá pelos lados de Bananais, Cumpade Severino me mostrou uma coisa dessas....

—Quando eu era mancebo lá pelos lados de Cabiuia, eu assuntei um negócio parecido com esse...

E ninguém jamais ousou duvidar que existissem tais lugares.

A varanda à frente da casa era o único limite que separava a residência da rua. Não havia cercas ou muros, pois a tranquilidade e a segurança da cidade tornava desnecessário qualquer tipo de isolamento. Na casa não havia luz elétrica ou água encanada, mas um enorme fogão de barro movido a lenha, defumava rodilhas de linguiça caseira e nacos de chouriço. Outros tipos de carne borbulhavam em velhas panelas de ferro, enquanto um tacho de feijão com enormes pedaços de toucinho fumegava no fogão alimentado por intermináveis toras de madeira.

O doce de leite era feito em tacho de cobre. Eu mesma fiquei horas mexendo, e mexendo até aquilo ficar em ponto de corte. Segredos que só a pequena avó conhecia. Nada me dava mais prazer do que "escanchar" no piso frio da rasa moldura da varanda e saborear as raspas do doce, até que o banquete principal estivesse pronto para ser saboreado.

Alguns viajantes passavam em frente a casa, munidos de suas câmeras caras, e tiravam fotos do tacho de cobre, da minha avó e até de mim que fazia muitas poses para ficar bonita no retrato.

Comprar mantimentos não era uma tarefa fácil. Andávamos um longo trajeto até chegar à cidade mais próxima. Mas o pior era voltar carregando as sacolas pesadas, caminhando por estreitas trilhas e trilhos da antiga estrada de ferro desativada. A avó desfiava histórias e contos até chegarmos em casa. Fiquei impressionada com a história de  um homem que não conseguiu tirar o carro que estragou bem em cima dos trilhos e perdeu a vida tentando fazê-lo funcionar. Ao invés de se salvar, insistiu em continuar dentro do veículo. Fiquei apenas matutando que, no lugar dele, teria saído correndo e deixaria que o carro fosse esmagado pela locomotiva.

As manhãs eram de um sossego bom. De orvalho cobrindo a plantação; de passarinhos ajeitando as asas e cantando para quem quisesse ouvir; do garoto da esquina, talvez, chamado Alfredo, que me oferecia um olhar sorridente e fresco, com a promessa de um encontro à luz da lua na noite tracejada de estrelas. Sussurros suaves e olhos naufragados de amor adolescente, o beijo doce e calmo coberto de risos e promessas. 

— Quando eu for um homem feito e bem sucedido irei à sua cidade pedi-la em casamento.

Risadas incontroláveis num cenário nada comum: o muro do cemitério da cidade.

Não tivesse sido aquele outro moço de olhar faceiro e de desejo inflame, Rafael, talvez, seja o seu nome, que insistiu em ver -me apenas um pouquinho... mais tarde... ou bem depois que o outro já se fora. Não resisti à tentação de vê-lo àquela noite e empreendi uma saída sorrateira para a escadaria da igreja. Deslumbrada pelo jovem ávido do meu beijo, Não consegui manter-me leal a Pierrot, enquanto Arlequim me oferecia as estrelas. Suas mãos trêmulas e inexperientes percorrendo minhas costas. O beijo ardente que pareciam nutrir cada glândula do meu desejo, e arrancavam de mim suspiros profundos e sôfregos. Seus olhos... Ah, seus olhos, eram a expressão da loucura que me faziam querer mais e mais daquele toque macio e atrevido que a essa altura do texto, já percorria meus seio direito apesar do meu esforço sobrenatural de conter seus avanços.

 Mas não existe crime perfeito e, de repente, meu príncipe passou por mim. Seu olhar encontrou o meu e desviou-se. Ressentiu-se. E foi aí que a mágoa substituiu o doce encanto do romance, e lá se foi o final feliz do meu conto de fadas.

Na manhã seguinte, ouviu-se o burburinho: "Sem vergonha, veio de outra cidade pra aprontar aqui". "Namorando na porta da igreja e do cemitério, não pode mesmo ser coisa boa. Que absurdo!"

Que importava os comentários se, ao mesmo tempo, perdi o olhar gentil do menino do cemitério e do menino do beijo doce da escadaria da igreja? Na manhã seguinte, ambos passaram por mim e desviaram o rosto para não me ver.

ENCONTROS E DESENCANTOSWhere stories live. Discover now