Turismo na cidade fantasma - 2016

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01:23.

Foi o horário que acordei naquela manhã.

Superstição ter prestado atenção nesse detalhe? Talvez uma pitada de loucura.

Não importa, o fato é que depois de ver esse horário no despertador do quarto de hóspedes da casa de Olga não consegui mais pegar no sono. 

Andei frequentando psicólogos durante os últimos anos, de forma que com esforço adquiri o hábito de dormir sem medicamentos. Os pesadelos ainda existiam, mas pelo menos conseguia acordar sem gritar quando eles aconteciam, o que era um grande alívio para Boris.

Após alguns minutos de contemplação de minha própria fragilidade, desisti de procurar o sono nas profundezas da mente. Não era bom ficar parada apenas pensando, manter minha cabeça ocupada era uma preocupação constante. Afinal, almas machucadas precisam de agitação, pois ficando paradas se perdem em um lugar muito obscuro para saírem ilesas. 

Tirei meu roupão da mala e peguei um cigarro da carteira, a noite estava muito fria para sair do conforto de casa e do alcance do aquecedor, mas indo até a sala de estar percebi que a porta para o jardim estava entreaberta. Olga podia estar acordada. 

A grama recém-cortada estava molhada da chuva de dois dias atrás. Mais a frente, Ivan olhava as estrelas, também com um cigarro. Ele era uma pessoa considerada normal, então talvez sua alma pudesse se dar ao luxo de observar o céu noturno sem se partir.

Apesar de o pequeno espaço florido no fundo da casa pegar boa parte da iluminação dos postes na rua, ainda era possível identificar no céu algumas constelações. Tão longe dos humanos e consequentemente tão seguras.

Me aproximei de Ivan e toquei seu ombro.

— Sem sono?

— Sim.

— Está tudo bem?

— Eu que pergunto, por que não está no quarto com Olga?

Ivan tirou o isqueiro do bolso e me estendeu, acendi meu cigarro e ele jogou o dele antes de continuarmos a conversa.

— Gosto de vir até aqui a noite, para pensar.

— Dessa eu não sabia.

— Talvez seja um sintoma da faculdade de filosofia. 

Nós dois sorrimos. Me concentrei em uma poça de água em meio a grama enquanto ele ainda olhava para o céu. Ivan Litvak havia sido uma luz na vida de minha filha. Sem ele, ela talvez ainda vivesse em Slavutych, e tudo que eu mais queria sempre foi afastar ela daquele lugar. 

Os dois se conheceram na Universidade de Kiev Taras Shevchenko, um ano depois de Olga começar o curso de Artes. Depois da faculdade Olga ficou em Kiev com Ivan, e apesar do vazio que Boris e eu sentimos por nos mantermos afastados, ficamos felizes pelo progresso dela. Eu adoraria ter a oportunidade de me mudar para lá, perto da minha filha e longe da famosa "Cidade dos sobreviventes de Chernobyl" mas nosso financeiro não nos permitia, e mesmo querendo eu não podia fugir de quem eu sou. 

Esquecer, sempre foi essa a minha busca. E lembrar sempre foi minha perdição. 

— Quando pretende ir embora de Kiev?

— Já quer se livrar de mim?

— Claro que não, minha sogra. Mas fico pensando em Boris. Ele está mesmo bem sozinho? 

— Ele se vira bem, e de qualquer forma só quero ficar mais alguns dias.

— Me preocupo com a saúde dele.

Nuvem Radioativa | Degustação Where stories live. Discover now