Capítulo 1

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  Estava escuro, e era difícil de respirar em meio a tantos corpos amontoados por conta do frio úmido que ameaçava a nos levar. Todos sabiam que pela manhã metade de nós estaria morta, mas o contato humano era a única coisa que tínhamos para nos proteger das correntes de vento que varriam nossa câmara de descanso.

Sabíamos também que esse descanso duraria pouco, pois o trabalho de selecionar os corpos mortos e arrasta-los até o lado de fora e despi-los, depois limpar as cumbucas de urina e fezes, e ajudar os mais debilitados que não tinham se recuperado bem de alguma das cirurgias, era nosso. Tínhamos que começar bem cedo, antes que fossemos levados para o banho a jato e depois ao laboratório para mais exames e cirurgias dos quais nunca sabíamos o que realmente faziam em nós.

Éramos apenas ratos de laboratório para eles, pequenos ratinhos que lutavam pela vida, com a esperança de que iriamos voltar para a Terra algum dia.

Senti o movimento do corpo ao meu lado se ajeitando entre a confusão de braços e pernas, a respiração ganhando força, e a temperatura aumentando... aumentando rápido demais para um corpo humano. Logo as luzes começaram a aparecer por de baixo da pele, e foi quando meu desespero aumentou. Todos começaram a se mover para longe e os gritos e choros começaram a aumentar, mas eu não. Eu apenas me levantei e deitei o corpo de Paulo o mais rápido que pude enquanto o corpo convulsionava por conta da alta temperatura corporal.

Já tínhamos visto aquilo acontecer diversas vezes: o corpo começava a ficar febril, a temperatura desregulava rapidamente e luzes vibrantes em tons de azul, verde, e roxo começavam a aparecer pelo corpo, como uma lanterna radioativa viva. Todos convulsionavam, o que era de grande alívio, pois, se estivessem conscientes no momento em que suas peles começavam a derreter, os gritos seriam horríveis.

Naquele momento a luz da pele de Paulo já irradiava tão forte por seu corpo que era possível ver todos ao redor. Eu não podia perde-lo, era um dos únicos que conhecia que tinham sobrevivido, já tínhamos perdido três de nossos amigos que foram sequestrados junto a nós, mas eu sabia que não tinha o que fazer se não torcer para que a morte fosse rápida e indolor, e ficar ao lado dele até o fim.

As lagrimas escorriam pelo meu rosto, e eu sussurrava diversas vezes seu nome, falava para que ele aguentasse, que ele ficasse comigo, mas de nada adiantava, as luzes brilhavam forte e as queimaduras já apreciam. Bolhas estouravam assim que se criavam. Ele estava derretendo de dentro para fora. Ele estava morrendo.

Alguém tentou chamar meu nome e me puxar para trás, mas me esquivei e continuei ali, segurando-o, a cabeça em minhas pernas para que não batesse no chão. Sua temperatura era tão forte que queimava minhas mãos e me fazia suar. Se fosse para ele morrer, que me levasse junto, pois eu não sobreviveria a aquele inferno sem ele.

A luz que irradiava aumentou de forma catastrófica, todos se encolhiam perto da parede por conta ta luminosidade excessiva que não estávamos mais acostumados. Não era mais possível vê-lo através dos raios radioativos, mas ainda sim continuei repetindo aquelas mesmas palavras, balbuciando através das lagrimas que já não eram mais apenas de tristeza e medo, mas de dor lascinante que queimava até meus ossos. Após cinco segundos de luz, esperando quando a morte finalmente nos alcançaria, o escuro voltou a reinar, mas não da forma como queria.

Eu ainda respirava. Ainda piscava freneticamente para ajustar a mudança drástica de luz para escuro. Ainda segurava a cabeça de Paulo em minhas mãos, deitado sob minhas pernas. Sua pele estava viscosa, mas ainda era pele, e ele ainda respirava.

Ele estava vivo.

Tinha sobrevivido, de alguma forma, ao próprio corpo que tentava se auto destruir, que tentava eliminar de todas as formas, aquelas substâncias injetadas em nós dia após dia, mês após mês.

Depois de um minuto parada em puro choque eu respirei fundo. Com a visão ajustada ao escuro novamente pude ver os estragos feitos em sua pele. Não eram tantos quanto esperava para uma torrente de radioatividade. Minha cabeça começa a trabalhar freneticamente analisando cada ferida, entendendo a complexidade delas e como curá-las.

Tiro sua cabeça de minha perna e a apoio no chão. Seu lado esquerdo estava pior, muito pior, como se só um lado tivesse sido atingido pela radiação. A pele estava deformada e vermelha, alguns pontos sangravam, mas não muito. A primeira camada de pele inteira tinha sido destruída da extensão dos dedos até a base de seu pescoço. Talvez isso que o tivesse mantido vivo, talvez não deve ter dado tempo suficiente para chegar até o cérebro e corroê-lo também. Eu Precisava agir rápido para que as feridas não infeccionassem.

- Os panos e a água – Eu digo em direção a Zeu enquanto examino as pequenas bolhas que ainda não tinham estourado – OS PANOS E A ÁGUA ELIZEU – Eu repito rispidamente. Por que ninguém se mexia? O que tinha dado neles? Eu precisava fazer curativos naquela merda de pele e ninguém se mexia!

- E-ele está...vivo? – Zeu diz em tom baixo e surpreso. Levanto a cabeça furiosa para encará-lo e repetir que precisava dos suprimentos, quando percebo o porquê de ninguém estar me ajudando: todos estavam em pé, nos observando incrédulos, olhos arregalados pelo choque. Ninguém nunca tinha sobrevivido a aquele processo, todos derretiam, uns mais rápidos, outro menos, mas todos corroíam até sobrar uma carcaça horrível e oca de pele e ossos, mas Paulo resistiu a cada etapa do processo que deveria tê-lo matado. Todos estavam assustados, talvez com medo até, pois não sabíamos se aquilo era algo bom ou ruim, muito menos o que aquilo nos tornava.

Paulo começa a se mexer, recobrando a consciência. Logo ele começaria sentir a dor da pele queimada. Eu não tinha como saber se algum órgão tinha sido comprometido, se algum nervo ou tendão tinha se rompido ou derretido, mas podia ajudar com a parte externa, então me levanto para pegar a água e nessa hora a tontura me corrompe.

Assim que fico de pé sinto a vertigem tomando conta da minha cabeça. Fecho os olhos, tentando respirar fundo e controlar a pressão berrante que latejava nos ouvidos e na cabeça. Em um momento eu estou de pé, no outro estou deitada no chão com alguém colocando água em minha boca, me fazendo engasgar. Eu não sabia que estava com sede até sentir a água descendo pela garganta, aliviando a queimação que estava ali sem eu sequer nota-la. Tento me apoiar nos cotovelos, mas a tontura volta novamente, e com mais força. Vozes se tornam distantes, a dor de cabeça aumentando e meu corpo inteiro formigando, minha visão ficando cada vez mais turva. Em meio a uma confusão de pessoas discutindo o que fazer a nosso respeito, olho para o lado e encontro Paulo ainda deitado ao meu lado, mas consciente, com a mão segurando a testa por alguma dor que também lhe tomava. Antes que o desmaio viesse, consegui distinguir a porta da câmara se abrindo no canto adjacente da sala, a luz entrando conforme os guardas afastavam e dispersavam todos ao nosso redor, dando espaço para os cientistas de branco se aproximarem.

A hora do pique nique tinha acabado, era hora dos exames e torturas.

Antes que pudesse lutar, a escuridão tomou minha visão, e eu apaguei.

CobaiasWhere stories live. Discover now