O pior pesadelo

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Ela enrolou e ascendeu um cigarro.
- O que você acha dessa minha postura de não querer mudar as pessoas?
Ela olhou devagar para ele.
- Bem certa, – seu tom era um suspiro, misturado com a tragada no cigarro. - mas impossível também. Tudo que fazemos afeta o outro.
- Tem coisas que afetam mais.
- Tem. É. - olhada pra cima - Que tipo de coisa?
- Você tem coisas que mudam fácil e coisa que são mais enraizadas. - Ele ergueu a sobrancelha e virou levemente o rosto como se a olhasse por um telescópio - Por exemplo, essa sua parada de me contar sonhos. Eu posso mudar fácil. É só pedir pra você não me contar mais.
- Vou continuar tendo eles, só não vou te contar. Sim, você quer dizer que um comportamento é fácil de mudar.
-Um que dependa de outra pessoa.
-Certo – o vento jogou a baforada de fumaça na cara dele – Desculpa!
-Tudo bem... - assopro forte – o que eu não mudo nas pessoas é o sonhar, digamos que fosse possível, que eu quisesse... mesmo assim prefiro que a pessoa seja ela mesma, que decida por si quais mudanças quer, porque minha interferência faria ela ser menos ela e mais eu.
- Todo mundo é um construto, – ela disse – todo mundo é influenciado pelo mundo, pelas experiências da infância, e da vida toda, e essas coisas constituem nossos gostos, ideias, tudo. Você não pode sair desse fluxo, não dá pra se isentar.
Ele fechou a cara, mais pensativo que propriamente sério.
-Você me conta seus sonhos e pesadelos e eu até hoje não contei nenhum de volta porque não sonho, ou não lembro dos sonhos, mas desde que começamos a nos ver de novo isso mudou.
Ela sorriu largamente.
- Me conta.
- Não é o que você está esperando – ele disse – É um pesadelo recorrente.
Sua voz pesou nestas últimas palavras e ele alcançou a mão dela mais uma vez.
Desta vez puxou seu cigarro.
-Por causa disso aqui. - segurava o cigarro entre seus rostos na altura dos olhos – Eu sonho que você está numa cama, num hospital – Ela crispou os lábios.
Já haviam se encontrado assim no passado, motivos diferentes, mas nunca uma boa impressão.
- Você está lá segurando minha mão. Eu não queria ir, mas não pude deixar de ir. Não sei como sei disso, acho que conversamos ou só aparece na minha cabeça, sonhos tem dessas coisas que simplesmente são. - ele forçou uma expressão mais séria para deixar o devaneio de lado – Bom, você morre. Você morre se afogando nos próprios pulmões, tentando buscar o ar que não vem, tremendo e com os olhos arregalados de desespero. Você agarra meu braço, crava as unhas nele, e depois relaxa... eu sei exatamente quando você morreu.
Ela abre a boca para falar, mas ele devolve um gesto leve que a faz esperar.
- Ainda tem o final. – ele continua narrando com a voz monótona e abalada – É um final um pouco egocêntrico, você não está mais lá e eu passo os anos que me restam me culpando por não ter feito nada antes. E você nem está lá pra dizer que foi uma escolha sua, que você viveu melhor assim, que eu não podia ter feito nada. Eu mesmo penso tudo isso, então vem aquela falta, e esses argumentos perdem o sentido. Ainda sinto culpa, mas não importa, só queria que você ainda estivesse lá.
Ambos calaram.
- Sabe o que mais dói nesse pesadelo?
- Ele é todo ruim. - ela não consegue disfarçar as sobrancelhas se curvando numa expressão de tristeza. - O que é a pior parte?
- Não acaba quando eu acordo.

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⏰ Last updated: Feb 16, 2020 ⏰

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