Dissonância

140 23 1
                                    

Todoroki encarou seu reflexo no espelho naquela manhã, um pesado suspiro carregado de angústia abandonou seus lábios, embaçando o vidro. As juntas dos dedos esbranquiçadas, tamanha era a força com que agarrava a borda da pia, como se tentasse manter-se com os pés no chão. Era como se estivesse à beira de um precipício, encarando a escuridão lá no fundo e considerando o estrago da queda, com suas pernas balançando inutilmente lá do alto, flertando com a possibilidade de um mergulho definitivo.

Todas as manhãs eram iguais, sentia-se dessa mesma forma todos os dias, mas hoje havia um sufoco em particular. Palavras entaladas em sua garganta que o envolviam com suas garras invisíveis, sufocando-o, exatamente como estiveram fazendo por meses, só que agora havia chegado o momento crucial de colocá-las para fora. E, honestamente, ele não sabia se poderia, se havia reunido coragem o suficiente.

Todoroki encarava sua forma aberrante com desgosto. Este corpo estúpido, cheio de redondezas em lugares que deveriam ser planos, traços que estavam tornando-se mais e mais suaves, a expressão morfando para algo mais próximo de sua mãe e de sua irmã, a cada dia que passava. Milhões de faltas e milhões de defeitos, todos encapsulados em uma estrutura esguia. Fraca. Frágil.

"Seria adorável, se não fosse pela cicatriz". Não foi isso que ouviu tantas vezes? A mera ideia fazia-o sentir-se tão repugnado que ao chegar em casa, ajoelhava-se diante da privada, colocando a angústia para fora, como se estivesse pagando uma penitência.

A cicatriz não era um problema, Todoroki gostava dela. Era a única coisa que o colocava do outro lado do jogo, a linha que demarcava o que era indesejável traçada bem ao meio, separava os lados, ele estava onde gostaria de estar, onde podia se sentir menos aprisionado.

"Ficaria bem com uma maquiagem. Isso é fácil de esconder. Por que não tenta?" Era como se pudesse escolher, assim. Não queria tentar, não queria parecer melhor. Queria apenas ser deixado em paz. A cicatriz servia como um escudo, por isso Todoroki gostava dela.

Mas os comentários das pessoas eram afiados, mesmo que estivesse completamente alienado e se acreditasse imune à maioria deles, no fundo, muitas coisas ainda machucavam.

Mesmo assim, Todoroki simplesmente se recusava a acabar com isso tudo de uma vez, apesar das sugestões de muitos. Foi com aspereza que o mundo lhe ensinou que os homens não são criados iguais neste mundo. As pessoas, em geral, não eram muito delicadas, principalmente com o que não compreendiam. Se havia um ato de resistência maior do que simplesmente acabar com sua triste vidinha medíocre, este com certeza era continuar lutando, apesar de suas circunstâncias, para mostrar-lhes que ele tinha tanto direito de estar ali quanto eles.

Alguns dias eram mais fáceis que outros. Às vezes eles esqueciam completamente da sua existência, era mais fácil quando era um fantasma, se misturando em meio à multidão e passando despercebido. Pior era quando eles lembravam, quando os olhos se voltavam para si e começava tudo de novo. Era muito melhor quando ele não existia para essas pessoas.

Faltavam alguns anos ainda, ele precisava aguentar mais um pouco – mais do que sua mãe tinha aguentado – até que pudesse renascer, até que sua vida fosse realmente começar. Mas ainda não podia fazer isso. Não aqui, sob os olhares desaprovadores de seu pai, sempre bufando e dizendo algo entredentes, decepcionado. Era para ele ter sido a obra mais perfeita dele, mas houve alguma falha no processo. Todoroki não sabia se o homem culpava a si mesmo por isso ou se achava que a culpa era de outra pessoa.

— O café já está servido, Yu! — Seu irmão, Natsuo, informou com batidinhas na porta.

Todoroki rangeu os dentes, sentindo sua mandíbula doer pelo esforço. Gostaria de gritar de volta: "Este não é o meu nome, droga!", mas, ao invés disso, apenas respondia:

Dissonância - bnha | trans!todoroki & urarakaWhere stories live. Discover now