Gêmeo está fascinado com a cena, julgo que ele nunca havia presenciado tanta selvageria em um período tão curto. Penso profundamente. Não é possível que jamais tivesse visto humanos naquele estado puro, nada pode o surpreender, nossa existência é imemorável.
Se for verdadeira minha suposição, realmente se interessou pelo conflito. Queria ter certeza que estou certo.
Me aproximo, uma fumaça envolve o seu cerne, não jaz em nossa dimensão, jamais havia feito. Suponho que desceu, o que pretende? Voltarei minha atenção para baixo.
Incontáveis minutos permanece na mesma posição. Distraído, conflituoso, não pensa em atacar e ajudar seus companheiros, não quer causar ferimentos, é proibido entre os provedores machucar a carne humana. A defesa da própria vida não é motivo para o assassínio. Permanece em conflito. Sua mente, ou espírito, não o deixa quebrar as regras.
Vê muitos transgredirem uma das proibições de sua crença. Socos, chutes em homens caídos, empurrões, mordidas e cabeçadas, uma troca intensa de agressões. O caolho se surpreende, não me surpreendo, todos eles decaem em algum momento de suas vidas, jamais vi alguém diferente.
Tocam em seu braço, grita na direção do homem que carrega uma garrafa quebrada na mão direita. É puxado, clama para que diga aos outros extremistas que parem as agressões.
Se aproximam da confusão e do sangue, muitos provedores estão caídos. À sua direita observa homens ensandecidos adentrando o compartimento interno, se engasga, quer gritar, quer agir.
Histeria, cólera. Tenta se livrar do homem que o segura, a mão é firme, esforça-se, não consegue se deslocar. O extremista encara-lhe, parece um cão raivoso, produz sons pela boca não usuais, entende a intenção.
É arremessado no chão, quica uma vez, as costas batem na madeira, o ar deixa seus pulmões, começam as agressões contra si, chutes em sua barriga, um, dois, três, quatro. Tosse, não tem tempo de respirar, ele não para. Protege a si, o extremista usa a outra perna para atingir seu peito, posta o braço esquerdo para absorver os ataques, são consecutivos, fortes.
O agressor mira na cabeça, sorri, a ponta da bota acerta a testa, o olho fecha, desmaia. O extremista continua fazendo o mesmo movimento, deixo de contar.
Não percebe que havia ficado desacordado. Prontamente ergue-se, não pode ver seu rosto para sua sorte, há inchaços na pálpebra esquerda, no lábio inferior, na testa, na região dos supercílios e na base do nariz.
Olha para a direção do compartimento interno, tenta correr, a barriga dói, não é possível se movimentar com destreza, o pulmão não reúne ar como antes. Caminha lentamente, achando que está rápido, um pé lidera o sentido do outro pé, pacientemente alcança a porta do compartimento.
O extremista o vê caminhar, sua feição lhe revela o quão incrédulo a imagem o faz estar. Ele se aproxima do caolho por trás, agarra seu pescoço com seus enormes dedos. O conduz para a borda do navio, coloca sua face contra a visão do frio e escuro mar.
Vejo o caolho fechar a pálpebra. Ecoam gritos infantis altos, desesperados. Reúne forças para levantar o pescoço, não consegue se virar, se balança para tirar-lhe as mãos, seu corpo vira, não por vontade própria. O extremista o encara, junta os dedos, forma uma pedra, reinicia as agressões, segura seu pescoço com firmeza. Não há entrada de ar para o provedor, acerta-o no lado esquerdo do rosto, sete golpes ao todo.
Suporta a dor. O extremista o olha produzindo o mesmo som de cachorro bravo, então, o empurra. Enquanto cai pede clemência, uma ação atrasada. Tenta alcançar a borda utilizando as mãos, no momento não raciocina.
Ouço plenamente o som das costas batendo na água, ouço o caolho segurar a respiração instintivamente antes de seu corpo se fundir ao imenso mar de Portugal. Afunda rapidamente, desesperadamente balança os braços, debate-se, inutilmente tenta subir, utiliza as pernas naquele momento, chuta a água, assemelha-se a uma onça no rio. Não sobe, não para de tentar, apenas desce, de metro em metro.
Não consegue enxergar o que está acima, olha para baixo, vê a escuridão, o fim, o sinônimo da primeira etapa do encontro com o divino que reverencia.
Há muito sonha em vê-lo, obviamente queria que acontecesse quando a velhice o acometesse. Pobre homem, quem controla o descanso das almas dualistas não é o criador que ele ama.
Seus pensamentos estão diversificados, memórias infantis o acometem com intensidade, mesmo envolto ao mar, consigo visualizar às lágrimas dolorosas. O pulmão se enche de água, mas as lembranças não cessam. O rosto da mãe doente aparece, se pudesse emitir sons, certamente o faria, quanta dor.
Surge na baixa-realidade.
A pressão marinha não mais o suga para a profundeza, o vento cessa seu sopro, as ondas param como se estivessem congeladas, os peixes não nadam, os navios não zarpam ou navegam. O caolho não respira, braços, pernas e cabeça não se movem, nenhuma parte de seu corpo responde ao seu comando. Resta-lhe a visão, vê o seu arredor completamente inerte, não sente o gosto salgado do mar, não sente seu peso. Medo, acha que está morto. Consegue raciocinar, nada está racional, pensamentos lógicos e mundanos o acometem, mas logo os afasta.
A sua frente há um vulto, acha que será levado. Sua presença faz a forma da água ficar desforme ao olho do animal. Não vê rosto, ou corpo, cabelo, ou pelo, acha que é o seu divino.
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AVENÇA IMORTAL
Historical FictionPS: ESSA OBRA FOI REGISTRADA NA BIBLIOTECA NACIONAL, NÃO TENTEM A SORTE SENHORES PLAGIADORES. Sinopse: Deixado para morrer por um grupo violento, Patro é visitado por uma poderosa entidade desconhecida que lhe oferece salvação se ele aceitar cumprir...