Kamélia

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"Que cheiro horrível. Detesto acordar assim." O primeiro pensamento ao acordar é marcante, profundo e verdadeiro. As vezes não chega a ter sentido, se levarmos em conta o fato de que estamos ainda um pouco atordoados após o sono. Ou, quando acordamos em uma cabana lúgubre, abarrotada com caixas de madeira mofada, utensílios como enxadas e forquilhas e uma vidraça completamente suja. O tímido raio de luz que ousa atravessar o buraco de uma fechadura ilumina algo úmido e vermelho logo ao lado da garota que acabou de despertar de um profundo sono. Ao tentar se mover, um zumbido toma conta do local. Moscas se erguem na escuridão e só então se dá conta do odor de carne em decomposição.

Nauseada, a garota tenta entender o que está acontecendo. Nenhuma memória lhe ocorria, apenas a sensação de que havia escapado de um perigo muito grande. E além de uma vaga sensação de alívio que logo foi sobreposta por medo, um discreto pavor rondava, dada a ocasião. "Tem alguma coisa se decompondo aqui. Será que fui sequestrada? Será que vão me matar?". Pensamentos sórdidos combinavam. Mas, no instante seguinte, surgiu algo que de certa forma exigia uma atenção maior:

-Quem sou eu?

Sussurrou. Não é todo mundo que acorda sem saber o próprio nome, nem de onde veio. Os sádicos gostam de ver uma a criatura momentaneamente perdida no tempo. Lutando para descobrir o próprio paradeiro. Porém, sádico ou não, é de se admirar a relativa calma com que a garota analisava o escuro, especialmente com o mal odor pelejando trespassar os vãos dos dedos que protegiam parte da face. O primeiro impulso foi ir em direção à porta, denunciada pela passagem de luz. Não foi difícil encontrar uma maçaneta enferrujada ao toque e girá-la. O primeiro contato com a luz fora dolorido aos olhos, mas foram necessários poucos segundos para que a visão se acomodasse à claridade.

A paisagem que seguia era fabulosa, mas ao mesmo tempo, horripilante. Um vale forrado com flores rasteiras vermelhas como sangue, que se estendia a perder de vista. Ao alto, um céu alaranjado se escondia atrás de algumas nuvens cinzas. Aproveitando a luz, uma rápida checagem no quarto escuro foi feita. Um grande corpo esfolado, com grandes músculos à vista, estava ao lado de uma cabeça de urso. Aquilo era algo realmente assustador. Talvez o susto fosse extremamente menor se fosse um corpo humano esfolado. Mas a cena era tão bizarra que não era possível tratar com o mínimo de normalidade. "Eu não tenho ideia de onde estou, nem do que está acontecendo. Eu preciso de ajuda!"

Ao se virar para procurar uma rota de fuga, a garota reparou em dois detalhes importantes. O primeiro, viu seu cabelo vermelho, logo antes de começar a armar um coque. "Por que tudo aqui tem que ser vermelho?". Segundo, uma outra cabana, feita de madeira escura, logo ao lado. Estava no ponto cego. "Eu sinto que devo fugir, mas não sei pra onde. Não há nem uma estrada para seguir."

Enquanto dava curtos passos para trás, pensando ser uma boa ideia se esconder para pensar, a garota acabou esbarrando em algo. Em seguida percebeu que suas costas ficaram molhadas e que havia uma respiração acima da sua cabeça. Ao se virar, foi obrigada a encarar um corpo ensanguentado, onde algumas moscas ainda passeavam. Ao topo, uma cabeça de urso, com olhos mortos, projetava uma respiração pesada através da boca escancarada e cheia de dentes. Após um grito de pavor, a garota conseguiu, de maneira desajeitada, desviar da gigante garra que veio em sua direção. Sem muitas escolhas, mirou na velha cabana ao lado e correu em direção a uma porta visivelmente destacada por duas lamparinas. Passos pesados e um rugido seco seguiram atrás, enquanto aqueles dois metros esfolados e desajeitados tentavam perseguir a Bela adormecida ruiva. 

A garota abriu a porta após se jogar sobre a mesma, derrubando algumas panelas de cobre que estavam penduradas atrás. Com pouco tempo para agir,  fechou a entrada com um estrondo e travou-a com a ripa de madeira que estava ao lado. "Isso não tem cara de ser um pesadelo." Pensou, apavorada. Segundos depois, a porta quase veio ao chão quando a criatura tentou entrar. Um novo rugido seco ecoou do lado de fora, e por repetidas vezes a porta ameaçou a cair. "Preciso agir ou fugir. Não quero morrer assim!" Ninguém aprecia a morte, porém, morrer como indigente deve ser algo cruel. Especialmente quando nem a própria pessoa sabe sua origem.

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