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Verão
Junho
- 1890

Limpando o rosto, desviou a atenção da ave e deu um passo minúsculo para trás, os olhos percorrendo os arredores. Por enquanto, tudo o que Liev queria era comer algo quente e dormir em segurança. As demais coisas - como sua loucura - poderiam esperar um pouco mais. Quem sabe mais dois anos, pensou com ironia, suspirando.

Se afastando do meio-fio, pisou na calçada e escolheu o caminho da direita, parecia mais iluminado e menos assombroso que o lado esquerdo. Com os olhos baixos e o olfato atento apressou os passos; quase podia sentir o cheiro de alho frito das lanchonetes - aquela hora já fechadas - serpenteando a rua deserta; ou o odor do molho apimentado que sempre sentia quando passava pela Escola Ochre, que ficava a dois quarteirões de onde estava, bem no centro de Sandhill. Suspirou. Aquilo a fazia se lembrar de Paris, com suas atrações e novidades, desde as roupas até o chocolate e o teatro. Sua mãe costumava dizer que se a França fosse um rosto, Paris com certeza seria os olhos dela.

"Temos tudo Liev. Beleza, arte e fama. Atraímos todos com a mais ínfima novidade. Quem vem para a França quer conhecer Paris."

Liev torceu o nariz.

"Somos então como os macacos no zoológico? Os tigres no circo?"

Madeleine riu.

"Um pouco mais elegantes, querida."

De repente, ao seu lado uma sombra enorme se levantou interrompendo sua divagação. Erguendo o rosto, Anne notou que se tratava de uma igreja abandonada. Havia muitas assim do lado mais escuro de Newcastle Upon Tyne, tão vazias e sujas - empoeiradas - quanto as almas de seus antigos fiéis. Aquela não era exceção. Seu tamanho, no entanto, chegava a ser assustador. E por alguma razão desconhecida, Liev parou. Seus olhos curiosos se fixaram nas janelas, se perguntando se vivia alguém lá. Alguém além dos ratos.

- Deveria entrar.

- Jesus! - exclamou, levando as mãos ao peito, tentando parar as batidas desenfreadas do coração. Seguindo o som da voz, reparou que havia alguém sentado nas escadas que davam para a porta da frente. Um homem de bengala se inclinava para trás, escondido nas parcas sombras que envolviam a igreja.

- Ouvi dizer - continuou - que é durante essa hora da noite que Deus concede o perdão.

Anne-Liev não sabia o que fazer com aquelas palavras. Pareciam ter sido ditas sem intenção alguma, e ainda assim com pretensão de fazer algo. Apertando o casaco esfarrapado, Liev olhou para a construção e abriu a boca, mas tudo o que disse foi:

- Não, obrigada.

- Uma mulher que sabe como dizer não? - Liev mais sentiu do que viu a cabeça dele inclinar para o lado. - Perigoso, não acha?

Anne-Liev estreitou os olhos.

- O que quer dizer com isso?

Um sorriso apareceu na escuridão.

- Nada. Tudo. Me diga, a senhorita não fica feliz por perceber que a sociedade, aos poucos, está em conversão? Eu, em particular, me sinto imensamente afortunado por presenciar isso.

Liev não soube dizer qual era a origem da pergunta. Mas ele sim, se a diversão em sua voz fosse uma indicação daquilo.

- Não saberia dizer, milorde. Jamais havia parado para notar algo como isso. - Estava ocupada demais tentando sobreviver, pensou.

Ele riu. E foi uma risada tão jovial e abrupta que assustou Liev. O homem então se levantou e desceu os degraus que faltavam, ficando de frente para Liev. Ela prendeu a respiração com o que viu.

Tsirk Croway Lune - PurgatórioWhere stories live. Discover now