CAPÍTULO ÚNICO

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O barulho que ecoava no local fazia sentir o melancólico sofrimento advindo do labor penoso. Faíscas voavam brilhantes nascidas da colisão entre o martelo e o metal que ia se moldando aos poucos. As chamas do fogo que queimava na fornalha lançavam nas paredes sombras bruxuleantes, cujo movimento quase fazia crer que havia rostos demoníacos saindo do crepitar na madeira. A sombra do ferreiro era ainda mais assustadora praticamente monstruosa projetando a dor que o homem trazia em seu coração.

Dos braços fortes as veias saltavam a cada martelada, demonstrando a força que precisava fazer para que o metal alaranjado pelo calor tomasse a forma planejada enquanto o suor que escorria pela testa morria em sua barba imunda e sem forma certa; os olhos um dia castanho claro, estavam negros e fundos, vidrados no objetivo. Criava algo que nunca fora feito por um homem, pois todo sacrifício era pouco para trazer a esposa de volta à vida. Recorreu antes a todos os tipos de artifícios, até se render à última esperança: artes das trevas.

Jurou realizar um pedido da seita que lhe entregara uma página do livro dos demônios, onde havia instruções para a forja de uma relíquia única no mundo. Seria ela a chave para abrir um portal pelo qual a amada esposa voltaria. Sendo um ferreiro talentoso não titubeou diante da empreitada daquele desafio, mesmo que custasse até o último suspiro de vida.

Aos poucos fez a esfera perfeita em proporções e oca que cabia perfeitamente na palma de sua mão.

O árduo trabalho durou um pouco mais de semana na qual não comeu ou dormiu, apenas bebeu água para se manter de pé. Por fim, quando estava pronta a bela joia de ouro puro que mais parecia um quebra-cabeça, o ferreiro cortou a palma da própria mão trêmula e calejada para deixar o sangue cair sobre o metal. A magia ruim evocada pelo trabalho e pela vontade de desafiar a Deus fez com que o sacrifício fosse aceito, do sangue derramado nenhuma gota caiu ao chão, tudo foi absorvido para o espaço oco. Era um item maligno, mas o ferreiro não se importava porque ao final teria o que mais desejava.

Levando a relíquia em um alforje de couro, o homem cambaleante saiu rumo ao túmulo da esposa. Sua figura assustadora vagou sobre a terra, em pele, osso e força de vontade. Era madrugada e ninguém o interromperia, a lua cheia declinava no céu e deixava a escuridão salpicada de estrelas pelo caminho onde antes reinara, ao longe era possível ver o povoado antes das montanhas sombrias onde lobos uivavam.

O ar do cemitério era pesado e gélido, pequenas lápides improvisadas preenchiam metros de terra agourenta. O homem se ajoelhou diante da lápide do túmulo da esposa e acariciou as informações gravadas ali. Chorou desesperadamente como no dia em que ela morreu, pois cinco meses não ajudaram a superar nem mesmo um pouco a dor daquela perda que era dilacerante.

― Por quê? ― Sussurrou para si. ― Não era sua hora! ― Reclamou entre soluços, a voz saindo como um ganido.

Secou as lágrimas com mãos trêmulas e tirou a relíquia da bolsa. Com as próprias mãos cavou o túmulo da esposa. Abriu o caixão e jogou a relíquia sobre os restos mortais enquanto voltava a chorar. Tirou da bolsa de couro a folha do livro e leu as palavras terríveis cujo significado não compreendia, nem sequer qual idioma se encontrava.

― Espero que funcione. ― Disse por fim, se afastando um pouco para observar.

O ferreiro aguardou, e aguardou... Mas nada ocorreu.

Com o coração em frangalhos resolveu fechar o caixão e partir, mas uma força sobrenatural o puxou para junto dos fétidos restos mortais enquanto a relíquia emitiu um brilho vermelho e fraco. O homem se debateu tentando fugir, mas o corpo parecia amarrado. Gritou em vão, afinal ninguém ouviria. A esfera penetrou pelas costas causando dor inenarrável e se rastejou arrebentando como fogo e vidro toda a matéria que encontrara pela frente, era como se a esfera tivesse vida própria, como um parasita se alimentando e movendo para outra região, até tomar o lugar o coração. O homem viveu apenas para se ver enlaçado pelos braços e pernas ossudos do velho cadáver que estava debaixo de si. Teria a esposa ao seu lado agora, mas não do jeito que gostaria. Aos poucos a terra voltou para o lugar de origem: sobre o caixão sem sequer parecer que fora mexida, apenas a bolsa de couro ficou jogada do lado de fora com a folha do feitiço dentro. E o ferreiro nunca mais foi visto, e com o tempo acabou se tornando apenas mais uma historia que o povo conta.

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⏰ Última atualização: Apr 14, 2020 ⏰

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