O relato de um louco

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Penso-me muito preocupado quando adentro sala de aula e levanto minha voz para dar voz às vozes silenciosas que habitam o labirinto que é meu pensamento. Eu sou uma mínima gente daquelas gentes que estacionam suas carruagens intelectuais em carteiras cinzas frente a um eloquente locutor e profeta que anuncia as verdades e as verdades de um mundo todo que, evidentemente, é excludente para com o que discorda e seletivo para com o que concorda. E dito isso, venho-lhes sempre com minhas ideias e infinitezas e exposições minando o pilar inexistente que é essa verdade mundana. Preocupo-me muito, penso-me. À margem de ser descolorido, à margem de ser desmulherado, à margem de estar-se na desordem biológica ou social, há sempre uma voz que se pode-se fazer voz viva. Há sempre um lugar existente de onde se fala e de onde se é ouvido. O capitalismo já entendeu isso. À parte de minhas transparências, reside em mim aquele que frequenta um lugar existível, mas que não pode fazer-se existente. Eu sou um louco. E desses muitos lugares existíveis que circundam o mundano que se positiva cada vez mais, a loucura mina o alicerce contemporâneo – a casa dos deuses do agora ateus –: a razão.

Deixe-me contar sobre uma pensadora dos tempos de agora que já não são mais. Estamira é de Rio de Janeiro. Estamira era mulher, preta, louca e filha do lixão de Gramacho. Resumo-a a isto para que as mentes empequenadas pela razão entendam, mas a verdade dos fatos de minha sabedoria é que Estamira foi uma força. Um algo inominável. Uma fagulha rápida que iluminou por alguns segundos a escuridão do pensamento cegado pela luz de gordura de baleia – e se segue-se pela elétrica. Talvez tudo seria mais sapiente se ouvidos captassem as vozes que lhes falam as bocas provenientes da escuridão das margens todas. Margearam Estamira por ser mulher preta, ainda que se reconheça como margem existente. Mas ela era muito mais. Se os loucos abalam o alicerce racional, os filhos dos lixões são um terremoto nas bases consumistas e vorazes desta sociedade insã. Os lixões – e seus filhos – são o produto daquilo que a sociedade maquiada descarta para manter-se altiva e inchada. Por isso prederam-na em remédios e cápsulas e perderam-na. Perderam-na e seus pensamentos porque aquela falava de não um, mas dois lugares existíveis – jamais, jamais existentes porque não o podem. A viga central da construção da vida não pode ser alterada, ou tudo se cai por terra acima. Cito-a porque levo junto a mim suas palavras em que se resume ao todo:


A criação toda é abstrata. O espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato. Tudo que é imaginário tem, existe, é. Sabia que tudo que é imaginário existe e é e tem? Pois é. Os morros, as serras, as montanhas... Paisagem e Estamira... Estamar, Estaserra... Estamira ta em tudo quanto é canto, tudo quanto é lado. Até meu sentimento mesmo vê, todo mundo vê Estamira. Eu, Estamira, sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. E eu me sinto orgulho e tristeza por isso. Porque eles, os astros negativos ofensivos, sujam o espaço e quer-me. Quer-me, e suja tudo. (ESTAMIRA)


Os alicerces são abstratos como deus e as mentiras.

A razão é a verdade de todas as coisas, dizem. E as leis, os discursos, as doenças. Só que não me sei mais. Não sei o mundo mais. O mundo deslegislado, indiscursável e desadoentado. Calei-me. Dessa vez eu não dei voz à voz do tempo líquido. Só virei-me de costas, sem antes dar um sorriso acalentado pela sapiência de viver-se num mundo que não é seu, e segui meu caminho atravessando as trincheiras que são as ruas de toda cidade olhando para os dois lados. Atentando-me à arma do moderno, poluente da loucura sã e maquinário das trincheiras das cidades todas: os carros. Imagine-se um mundo onde os carros e as carruagens velozes não frequentavam a vida das gentes. Um mundo onde eu pudesse pensar com minha boca, com meu nariz, com meus dedos, com meus sonos. E bastava-se andar e andar como assim o quisesse. Bastava-me ser-me em meu estado de louco e pensar o mundo como assim o quisesse. Aí vieram as carruagens e os carros, e as pessoas necessitaram-se entender a razão para tudo aquilo. Entender a razão para poder sobreviver. Os carros – pensei comigo – são a maior invenção dos homens da razão para matar os loucos.

Não me estou jogado à carnificina dos hospícios, para os azares dos pensantes da vida como eles acham que ela é; também não me estou jogado à selva das pedras cinzas e piche, como andarilho pensador e poeta romântico, também para os seus azares mais íntimos. Estou-me parte da classe acadêmica, ainda que ela não me veja existir. Sou-lhe. Olhem-me com esses olhares enviesados que sempre se fazem julgadores. Olhem-me e murmurem suas orações ao deus das suas verdades de todas as coisas. Não me importo e não me interessa mais. Eu sou um louco privilegiado e usarei desse privilégio, pois decidi gritar-me. Lidem com isso e chorem com seus olhos de jacaré.

-seWhere stories live. Discover now