Capítulo 23

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   Conseguimos sair do limite central do acampamento.
   Ainda sou capaz de ouvir os gritos e minha cabeça começa a se encher, as lágrimas que descem pelo meu rosto borram minha visão. Estamos seguindo a margem do rio, meu cavalo aumenta a velocidade a cada instante, o vento que passa pelo meu rosto leva minhas lágrimas, mas meu coração transborda dor e medo.
   Tânia está a toda velocidade do meu lado no seu cavalo, a capa voa atrás de si com beleza, ela olha para os lados esperando algo. Estamos no limite da floresta, as árvores já começam a ocupar espaço, e o rio do lado esquerdo determina nossa direção. Até que ela olha para o céu e ver uma das criaturas voando na nossa direção, sem um arco, ela usa a lança. A general solta as rédeas e sem pensar, se levanta, ela se equilibra com destreza. Ela fica de pé mesmo com o cavalo em movimento, ela espera que ele se aproxime, com as garras erguidas pronto para captura-la, um segundo antes de conseguir, ela joga a lança em sua cabeça. A arma atinge o olho e solta um grito agonizante, sangue preto respinga em mim.
   O monstro ainda consegue voa em linha reta a ponto de atingir o cavalo dela. Mas Tânia é mais rápida e ela pula do cavalo, dando um mortal e aterrissando em pé. Ela pega a lança da cabeça da criatura e corre na minha direção, mas o meu cavalo não para e ela não ordena isso. Mesmo a pé, ela é rápida.
   — CUIDADO – grita ela.
   Olho para cima esperando um ataque aéreo, mas uma força explode na minha frente, vinda do chão e me pega de surpresa. Vejo de relance uma muralha preta e um urro forte enche minha cabeça. Meu cavalo voa na direção oposta a minha, a aterrissagem é dura, o mundo gira em todas as direções, caio de costas, perdendo o ar.
   Minha visão fica embaçada, pontos pretos dançam diante dos meus olhos. Minha cabeça lateja, devagar ergo minha mão para trás dela e sinto sangue, a dor faz o meu corpo estremecer, olho para o lado e vejo que bati em uma pedra. Antes que eu lamente a dor, vejo o que causou a minha queda.
   Diante de mim, uma criatura surge do chão explodindo. Ele se projeta de forma horrenda, tem a forma de um gorila, as costas curvadas sustentam seu peso exuberante, ele tem braços grossos como madeira e garras tão afiadas que parecem cortar o vento. Uma cauda balança atrás de sim e seu corpo coberto de pelos negros não escondem os olhos vermelhos como carvão em chamas. Ele berra, revelando dentes afiados como navalhas e o grito estremece meus ossos.
   O monstro possui um rosto largo e orelhas pontudas, ele fede a enxofre, minhas narinas ardem fazendo a dor de cabeça piorar. O medo me paralisa, não consigo reagir quando ele me ver e avança na minha direção, tento me apoiar nos joelhos mas minha coluna lateja. Ele está quase em cima de mim, fecho os olhos e torço para não sentir dor. Uma lágrima solitária desce pela despedida que não dei ao meu pai.
   Então escuto um grito feminino, abro o olho rapidamente e vejo a Tânia de pé na minha frente, ela segura a lança em posição de luta enquanto o monstro vem na nossa direção.
   — Não achou que morreria fácil, achou? – ela diz de costas para mim.
   Ela corre na direção dele. O monstro lança um soco em sua direção, mas com um salto mortal lateral, ela crava a lança no pulso dele e a parte traseira utiliza para atingi-lo no rosto. Sangue preto jorra em ambas as partes. Ele é maior do que ela, mas não é tão ágil quanto.
   A criatura cambaleia para trás e ela usa o tempo tonto dele, para dar uma estrela e chutar o rosto dele. Ele cai de quatro no chão e rosna, saliva voa em todas as direções. Ele corre na direção dela e Tânia se joga para o lado, mas ele ergue a mão e ela é arremessada. Ela rola alguma vezes antes de parar, fazendo um caminho de terra. O monstro desfere um soco nela, mas Tânia gira para o lado e enfia a lança na lateral do monstro. Ele uiva de dor e cambaleia.
   Então o pior acontece, do mesmo modo que esse surgiu, outros três surgem do chão em uma explosão de areia e pedra. Me sinto sufocada com a poeira e começo a tossir. Tânia não dará conta de mais três desses, tenho que ajudar ela. Tento me mover, a dor lateja pelo meu corpo e minha cabeça parece sangrar mais, sangue pinga nas minhas costas e a dor aumenta, o corte deve ter sido fundo, mas consigo ficar sobre os cotovelos. Mas não consigo me levantar, ainda me sinto tonta.
   Na minha frente, Tânia arranca a lança do corpo do monstro morto e gira entre os dedos, ela nem hesita ao avançar. Todos atacam simultaneamente, berrando e jogando suas garras em todas as direções. Um corre na direção dela de quatro, ela dar um salto mortal para a frente e aterrissa em suas costas, derrubando-o de barriga. Ela usa o impulso do salto e pula para a frente com a lança erguida, um deles consegue segurar a arma, mas ela utiliza o fato de que está pendurada nele para chuta-lo no rosto. Ele cai para trás e outro pula sobre ela, Tânia pula para trás e com as mãos consegue se equilibrar no chão.
   Um deles pula sobre ela, e Tânia se joga de joelhos no chão e esquiva o corpo para trás e ergue a lança, ela atravessa a barriga da besta. Ela se levanta rapidamente, mas não percebe quando um deles está atrás dela. Eu estou prestes a gritar quando ele segura ela pela cintura e ergue do chão, a general gira o braço e bate a ponta da lança no rosto dele. Ela cai no chão e gira com a lança na frente do corpo, cortando a barriga dele.
   Tânia luta com agilidade, seus golpes são fatais e improváveis. As criaturas não tem noção do que fazer, os ataques deles são selvagens e previsíveis. O terceiro monstro pula sobre a Tânia e ela tenta esquivar, mas as garras dele perfuram sua perna. Sangue jorra e eu consigo ver carne exposta, a ferida está aberta em três cortes. A expressão de dor que passa pelo seu rosto é agonizante. O monstro caminha esguio ao redor dela, pronto para o bote. Eu me apoio na pedra e tento me levantar, apesar da fraqueza consigo fazer isso, mas me sinto um pouco tonta.
   A criatura está prestes a pular sobre ela, com a boca aberta e as garras expostas, quando no ultimo segundo ela gira com a lança erguida. A ponta atravessa o corpo dele no mesmo instante em que as garras dele perfuram a barriga dela. A besta morre com um urro frustrado, e sem me preocupar comigo corro cambaleando até ela. Minha cabeça lateja a cada passo bambo que dou.
   Chego até a Tânia e vejo a ferida feia em sua barriga, revelando carne viva e sangue que já forma uma poça ao redor dela. Seus olhos já distante perdem a vida aos poucos e seu corpo cede a morte. Ela olha pra mim e seus lábios tremem.
   — Pela lua me guiarei – diz. Então me lembro que essa é frase de despedida para uma caçadora em sua morte. Helena me ensinou alguns dias atrás. Onde o começo original é “pela lua se guiará”.
   — Em suas caçadas pela terra segura – continuo. – os campos que protegem os heróis, será sua imaculada pousada – uma lágrima desce pelo meu rosto, e sinto dificuldade em dizer a última frase, sinto minha garganta fechada. – a deusa Ártemis honra a sua luta.
   Um breve gemido escapa de seus lábios e sua vida se esvai. A dor no meu peito aumenta, ela morreu me ajudando, me protegendo, as lágrimas caem dos meus olhos tristes e furiosos. Por tudo o que está acontecendo, por tudo o que deixei para trás, por quem eu me tornei e por quem se foi por minha culpa. Tremendo, coloco a cabeça dela no chão devagar, seus olhos ainda abertos e opacos vigiam o além, mas eu os fecho para ela contemplar a escuridão no descanso. Mesmo morta, seu rosto esbanja coragem e determinação.
   Me levanto e olho ao redor. Ela se foi deixando um cenário horrível, as árvores e a mata ao nosso redor está manchada de sangue, algumas árvores estão destruídas com os corpos dos monstros cortados. Eles parecem menos inofensivos nem mesmo mortos. Conto três deles, então percebo que tem algo errado. Olhos para os lados e percebo que falta um deles, o que foi perfurado pela lateral.
   Estou prestes a sair quando vejo uma sombra se projetando atrás de mim, sinto uma respiração pesada. Viro-me a tempo de ver a criatura erguida para me atacar, mas não tenho tempo de me defender. Solto um grito de pavor e cambaleio para trás. Mas de repente, a ponta de uma flecha sai de seu crânio, fazendo sangue respingar em mim.
   Dou três passos para trás antes do monstro cair imóvel no chão, revelando o restante da flecha entrando pela parte traseira de sua cabeça. Ele cai revelando a Helena parada atrás com o arco erguido. Ela está ensanguentada, sangue sai de um corte fino na sua perna. Ela ver o corpo da general Tânia e seus olhos se arregalam, uma expressão de choque passa pelo seu rosto.
   — Não... – ela sibila. Seu olhar vagueia por uns instante, até que ela parece cair em si. – vamos, você precisa ir.
   — O que está fazendo aqui? – pergunto assustada, minha voz sai trêmula.
   — Não temos tempo para explicação – ela diz. Helena coloca o arco nas costas e vem na minha direção.
   Ela coloca meu braço ao redor de seu pescoço e me ajuda a caminhar. O sangramento na minha cabeça não para, e me sinto fraca, o corpo gelado. Meu cavalo está parado na margem do rio, aparentemente bem, como se as criaturas não tivessem se importado em atacar ele. Helena me ajuda a subir, com dificuldade me ponho em cima dele. Eu fico na frente, com a cabeça apoiada na crina do cavalo e ela atrás, de costas para mim, com o arco em mãos pronta para qualquer coisa.
   O cavalo retorna seu caminho, seguimos o rio a toda velocidade. Vejo os borrões da paisagem. Não consigo ver o rosto da Helena, mas percebo que está tensa. Mas mantém a postura ereta e focada.
   — A deusa Ártemis me mandou quando os monstros começaram a brotar do chão – diz. – esse ataque surpresa nos derrubou.
   Não sei o que dizer, as palavras dela parecem vagas. Até que escutamos berros distantes, urros de fúria, sentimos o chão tremendo a cada instante. Consigo me forçar a olhar para trás e meu coração dispara com o que vejo. Ao longe, pelo caminho que viemos, uma dezena das criaturas que mataram a Tânia avança em nossa direção, correndo rápidos e furiosos. Seus gritos ecoam por todo o lugar, eles derrubam árvores que aparecem em seu caminho.
   — Estamos chegando – Helena diz. Ela vira a cabeça e olha para mim, seus olhos parecem fundos. – após passar pelas piras de tochas nos dois lados do caminho, você irá ultrapassar a barreira mágica cedida por Héstia, como deusa do lar ela protege o nosso acampamento. Depois que passar, você só poderá voltar ao acampamento acompanhada da deusa Ártemis – Helena analisa meu rosto e abre um pequeno sorriso de canto de rosto. – desculpa Sara, tenha passagem segura para sua busca.
   Estou fraca demais para tentar retribuir. Helena então se vira de volta e pula do cavalo em movimento, um grito escapa de mim. Me apoio na cabeça do cavalo e me forço a olhar para trás. Helena rola por alguns segundos antes de cair de sobre um joelho. A multidão de monstros berrantes avança na direção dela. No segundo em que se estabiliza ela puxa uma flecha de aljava e atira na direção deles. A flecha atinge as criaturas e uma explosão ocorre, lançando alguns pelos ares e fazendo outros queimarem. Ela pega outra flecha e atira na direção de um, mas ele se esquiva em um pulo.
   Helena então se levanta e sai correndo na direção da floresta, adentrando e sumindo em meio as árvores. O que quer que ela tenha feito, deu certo. Os monstros avançam atrás dela, perseguindo-a e me esquecem. Meu coração se aperta cada vez mais ao passo em que minha visão escurece.
   Vejo de canto de olho as tochas sobre piras em pequenas colunas de mármore. Assim que passo por elas, sinto um calafrio percorrer o meu corpo. Olho para trás mas não vejo nada, nem a parede de poeira da explosão da Helena, nem a destruição do acampamento que deixei para trás e nem mais as colunas com as chamas.
   Minha mente tonta vagueia entre meu pai, entre a Helena e a Tânia, a missão que estou destinada a cumprir, ao destino em que estou prestes a enfrentar. O que me espera é muito mais do que deixei para trás, sinto isso. Sinto cada parte do meu corpo tenso, as lágrimas não saem mais, a pressão sobre meus ombros é demais para mim.
   Tenho muito o que pensar, muito o que fazer, o que sentir, planejar. Mas não tenho tempo para nada. As preocupações que assolam minha mente e ameaçam me derrubar são tão mortais quanto o ataque que presenciei.
   Deixei tudo para trás.
   Busco algo pela frente.
   A escuridão me consome antes que eu perceba.
   E Caio no infinito do meu ser.

Nix - A dama da noite Vol.I Where stories live. Discover now