Capítulo 21

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O homem da perna mecânica Prt.1

Quem já esteve em Roterdã há de infalivelmente lembrar-se de uma casa de dois andares, sita no subúrbio, e contígua à baía do canal que corre entre esta cidade e as de Haia, Leida e outras. Digo que há de infalivelmente lembrar-se, porque de necessidade devem ter-lhe mostrado, em razão de haver sido habitada em outro tempo pelo mais engenhoso artista que a Holanda tem produzido, sem falar da sua filha, a mais linda rapariga de quantas tem nascido no recinto de um solar holandês.

Desgraçadamente, não é com a formosa Branca que temos agora de ocupar-nos, senão com o velho cavalheiro seu pai. Sua profissão era de fazer instrumentos cirúrgicos; mas a fama que havia adquirido nasceu principalmente de sua pasmosa habilidade em fabricar pernas de pau e de cortiça.

Sua reputação era tamanha neste ramo de ciência humana, que aqueles que a natureza tinha ludibriado ou o acaso mesmo, negando-lhes ou arruinando-lhes uma tão necessária parte do corpo, vinham manquejando ter com ele aos cardumes; e, por mais desesperado que fosse o caso, eram logo, segundo a opinião do vulgo, “postos de novo sobre suas pernas”.  Muitos coxos, que já tinham por impossível a cura da sua deformidade, e cuja única consolação consistia  em uma sorrateira censura feita de quando em quando à Providência, por ter confiado seu saber a um  jornaleiro, achavam-se depois tão maravilhosamente consertados, tão elegantemente especados por Mijnheer Tourningvort, que entram a duvidar se um sustentáculo de madeira ou de cortiça não era, em última análise, preferível ao de carne e osso, já cediço, e tão sujeito a riscos. E, em verdade, se vós, meus caros leitores, tivésseis observado quão delicadas e excelentes eram as produções trabalhadas por este habilidoso artista, ter-vos-íeis visto embaraçados em decidir a questão por vós mesmos; muito principalmente seja fostes alguma vez atormentados pela gota ou pelos calos nos vossos dedos dos pés.

Numa manhã, em ocasião que Mijneer Tourningvort se ocupava em dar a uma barriga de perna e um artelho a alisadura e polimento finais, entrou um mensageiro no seu estúdio (é preciso falar classicamente), e lhe pediu que já e já o acompanhasse à morada de Mijnheer Van Wodenblock; era a morada do mais rico negociante de Rotterdam. Também o artista só gastou tempo em pôr a sua melhor cabeleira; e saltou para a rua, levando em uma mão seu chapéu de três bicos, e na outra sua bengala de castão de prata.

      O caso era este: Mijnheer Van Wodenblock , dias antes, tinha-se dado ao louvável trabalho de expelir da sua casa a um parente pobre; e como tentasse com um ligeiro impulso apressar a incômoda descida dos degraus a este miserável (porque Mijnheer mui raras vezes usava de cerimônias com seus parentes), perdeu desgraçadamente o equilíbrio, e caindo de cabeça para baixo, rolou pelos degraus desde o topo até à base. Quando recobrou os sentidos, verificou que tinha quebrado a perna direita, e que estava com três dentes de menos. Seus primeiros pensamentos foram de processar o mísero parente por crime de homicídio; mas, sendo de um natural misericordioso, contentou-se com mandá-lo para uma prisão, por falta de certo pagamento, deixando-o saborear ali a confortadora reflexão de que sua mulher e filhos estavam em casa morrendo à míngua.

Um dentista logo supriu o inválido com três dentes, que havia arrancado da boca de um poeta indigente, a preço de dez vinténs cada um, e pelos quais leve a prudência de pedir vinte guinéus ao rico negociante.

   O médico, lembrando-se, ao examinar a perna, que estava na maior necessidade de um tal objeto, cortou-a com muito cuidado, e levou-a em seu carro, para dar lições a seus discípulos. Tão acautelado era Mijnheer Van Wodenblock que se tinha acostumado a andar passo a passo, sem nunca ter dado um salto; e vendo-se, agora, algum tanto prejudicado no belo cômodo de seu primeiro modo de ação, mandou chamar o nosso amigo à baía do canal, afim de lhe dar instruções concernentes ao suplemento, de que desejava prover-se no lugar da perna perdida. O artífice subiu à câmara do opulento burguês, e deu com ele reclinado sobre uma camilha em companhia de sua perna esquerda, que se mostrava tão respeitável como sempre; ao passo que o desventurado coto direito jazia envolvido em ataduras, como se fosse cousa de pouca importância.

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