02. contatos de primeiro grau

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— Só mais um pouquinho e... chegamos, amigão! — exclamou Quincas, empurrando a cadeira de rodas motorizada para dentro da casa. — Até que foi ligeirinho, né?

"Ligeirinho" era uma palavra que causava coceiras em Miguel. Os quarenta minutinhos que levaram do hospital à casa que ele ocupava em Ipanema, na belíssima Zona Sul de Porto Alegre, foram uma prova de resistência e paciência como nenhuma outra. Ainda com a chuva forte pipocando nas calçadas, transformando os pedestres em desesperados por abrigo e os motoristas em feras irracionais, o humor de Miguel, depois de uma noite no hospital e quarenta minutinhos sentado no banco de trás do Corsa de um motorista de aplicativo grosseiro, não era dos melhores. Para piorar, ainda havia aquela maldita coceira no cotovelo direito que o gesso impedia de resolver.

Em resumo, quando Quincas girou a porcaria da cadeira de rodas motorizada e alugada às pressas pelo olho da cara, Miguel quis morrer. O problema não era Heloísa, que tinha a bolsa de grife no antebraço enquanto checava as ações da AlphaCom pelo celular. Nem Quincas, que sorria e falava sobre os benefícios de uma licença médica. O problema, como Miguel já esperava, era a tal Aurora Bianchi. Ela olhava para cada pedaço de sua sala de estar, para o piso de carvalho e para os móveis projetados como se estivesse diante do sarcófago perdido de um faraó até então desconhecido da arqueologia, e não numa das casas mais caras da região, próxima à famosa Praia de Ipanema, na Zona Sul de Porto Alegre.

Se pudesse, Miguel teria cerrado os punhos. Por que diabos a faxineira assassina ainda estava ali? Não havia sido suficiente para ela destruir um contrato milionário e quebrar os dois braços e uma das pernas dele? E o pior de tudo: Aurora Bianchi, como parecia ser costumeiro, inundava o chão com aquele capacete cor-de-rosa ridículo, pingando água da chuva no querido piso de Miguel. Ele abriu a boca para reclamar, porém Heloísa saiu na frente.

— Precisamos esclarecer alguns pontos — disse ela, enfiando o celular na bolsa. Aurora virou a cabeça, encarando-a com aqueles olhos castanhos grandes demais e os cabelos molhados e curtos colados à testa. — Falei com o RH da AlphaCom e tá tudo certo. Enquanto durar a licença do Miguel, tu vai receber teu salário normal pra desempenhar as funções de... cuidadora. Tua ajuda vai ser inestimável, querida.

Heloísa e suas maquinações. Se ela não tivesse se metido, a AlphaCom deveria bancar um profissional para acompanhar Miguel durante a licença médica. Estava previsto no contrato, preto no branco, mas Heloísa conseguia tudo o que queria. Apesar de suas intenções serem boas — garantir que Miguel pudesse trabalhar sem interrupções e pagar um tal favor — o preço era alto demais. Ele, um dos executivos mais valiosos da companhia, nas mãos de uma doida varrida que era incapaz de erguer placas para avisar que o piso estava molhado.

E eu não acredito que aceitei a ajuda dessa maluca por causa de uma mesa, pensou ele, olhando com asco para Aurora Bianchi. Ainda ontem, Heloísa voltara ao quarto de Miguel no hospital e fizera uma proposta irrecusável: se ele aceitasse a ajuda da auxiliar de serviços gerais e calasse a boca sobre o assunto, Heloísa deixaria que ele ficasse com a mesa mais próxima da janela tão logo conseguissem a tal promoção que os levaria ao trigésimo andar.

Toda aquela palhaçada por causa de uma mesa. Tu te vende baixo, hein?, pensou ele.

— Agradeço muito, Heloísa — disse sua nova enfermeira. — Sem esse emprego, eu não...

Mas Aurora Bianchi não terminou a frase. Sons assustadores de batidas na porta, acompanhados de um choro estrangulado, chegaram até eles. Tudo ficou em silêncio.

— O vento deve ter fechado a porta do quarto com o Ringo lá dentro — disse Miguel, olhando para o andar de cima. — Quincas, por favor.

O amigo assentiu, subindo os degraus de dois em dois. No breve silêncio rompido pelo choro e as batidas estrondosas na porta, Heloísa conversou baixinho com Aurora. Ele fechou a cara, querendo empurrar as duas para fora de sua casa, de sua intimidade. Quem elas pensavam que eram para tratá-lo feito uma boneca de pano? Mas a resposta não teve tempo de chegar aos pensamentos de Miguel. Ringo foi mais rápido, como sempre.

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