Máscaras da vida real

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Faz alguns dias que tudo ficou diferente. Eu não sei ao certo o porquê, mas há no rosto de algumas pessoas uma preocupação evidente, de outras um grande sarcasmo. Sempre estou na rua, isso faz com que eu ouça conversas e saiba o que está acontecendo, pelo menos na cidade. Não que alguém me informe, ninguém fala comigo. Eu sou invisível, mas ouço pedaços de conversas entre os pedestres que passam por mim.

Desde que estou nessa cidade do interior de Minas, escolhi uma marquise entre um supermercado e um edifício residencial para passar dias e noites. Há um pequeno espaço que me permite esticar o corpo sem levar muitos chutes dos pedestres; de vez em quando, um ou outro diz não me ver e acaba tropeçando em mim. Nada demais. Por estar nesse lugar, acompanho a rotina de quem passa por mim. Desde os estudantes que saem de suas casas de manhã para estudar, aos trabalhadores vão e vem pela mesma calçada.

Há uma senhora que sempre vai à igreja aos domingos, logo após, passa no supermercado e volta para sua casa na companhia de uma criança. Eu apelidei essa senhora de dona Maria, pode não ser o nome dela, mas ela tem cara de Maria. Faz algumas semanas que ela não vai à igreja porque a casa de Deus não tem aberto as portas. A criança, que acredito ser neto de Dona Maria, eu vi duas vezes: a primeira, na companhia de um homem jovem saindo do supermercado; e pela segunda vez, com esse mesmo homem passando por mim na rua, mas quase não os reconheci. Eles usavam máscaras. Depois desse dia, nunca mais os vi.

Também nunca mais vi os alunos irem para a escola. A praça foi isolada. O fluxo de pessoas na rua diminuiu. Alguns comércios nunca mais abriram, outros seguiram funcionando de um jeito diferente. Eu não sei explicar, mas tudo ficou diferente.

Certo dia, eu estava dormindo durante a tarde... Não! Não é nenhum luxo dizer que eu durmo quando todos estão acordados. Prefiro dormir durante a tarde porque tenho medo da noite. Um ano atrás, enquanto eu dormia durante a madrugada, jogaram fogo na minha barraca. Até hoje sinto dor ao lembrar do plástico quente derretendo sobre minha pele. Meus próprios gritos de dor parecem ecoar em minha mente. O fato é que homens vestidos com roupas grossas, máscaras e óculos começaram a sair pelas ruas lavando todas as calçadas. Eles molharam tudo, ao chegarem perto de mim, pediram para que eu desse licença e retirasse minhas coisas. Assim eu fiz, mesmo sem entender o que acontecia, os homens precisavam continuar seu trabalho.

Agora, continuam passando muitas pessoas por mim. O fluxo diminuiu, mas não zerou. Há algo em comum entre todas as pessoas, isso é engraçado e estranho: todas usam máscaras. Vão e voltam sempre cobrindo seus rostos. O porquê? Também não sei dizer ao certo. Até tentei perguntar, mas quando chamei um homem que passava pela rua, rapidamente ouvi de sua boca as mesmas palavras de sempre: "não dou esmola".

Não fiquei chateado com a resposta automática do homem, afinal, é o que ouço todos os dias. Doeu. Doeu, agora não dói mais. Ninguém queria me explicar o que acontecia, mas eu suspeito o que é: há uma doença na sociedade. Um carro de som passou pedindo para todos ficarem em casa, usarem máscaras e lavarem as mãos. Eu não tenho casa. Não tenho dinheiro para comprar uma máscara, na verdade, não tenho nem mesmo onde lavar as mãos, afinal, a igreja continua fechada. Eu não sei como se pega essa doença. Não sei! Mas deve ser importante mesmo fazer o que o carro de som pediu, eu faria, se pudesse. 

AMORES DE GIZWhere stories live. Discover now