O Homem

9.7K 398 230
                                    

O homem decidiu voltar da viagem mais cedo. Sofria com a mágoa de um coração destruído. E sentia sede de vingança. Ele temia pelo o que encontraria e seu coração hesitava quando pensava em o que fazer.

Já passara o momento da fúria, incredulidade e negação. O momento era de ajustar as contas. Apesar de seu coração nunca ter pensado nisso, a raiva que o cegava não permitia mais espaço para a inércia. Como ele poderia deixar isso passar?

No avião, pediu um whisky: "Não quero estar sóbrio quando for a hora" - pensou, tentando conter o tremor da mão. A moça ao lado, uma senhora, que já parecia ter visto tudo na vida, tentou acalmar o companheiro de viagem:

- O pior é só na hora de decolar e pousar. Depois fica tudo bem. Mas se precisar, pode apertar minha mão - ofereceu ao homem desconhecido.

O homem não ouviu o que ela disse, mas sabia que era com ele. Com um aceno de cabeça, mostrou que a mensagem foi recebida, mas que não se importava com o conteúdo. Sua mente já havia decolado com o avião.

Com o whisky na garganta, seu coração se acalmou. Mas para sua surpresa, a dúvida e hesitação foram se afastando, como um navio no horizonte. A sua certeza começava a assustar a si mesmo. Talvez fosse bom. Precisaria de foco. Ele não sabia qual seria sua reação na hora H. Ele só queria voltar a dormir em paz. Era o que pensava a cada minuto.

Uma viagem de Brasília ao Rio de Janeiro costuma durar por volta de 1h30. Mas naquele dia, naquele avião, o tempo adquirira vida própria e teimava em não passar. O homem olhou o relógio e viu que só vinte minutos haviam passado desde que a simpática senhora tentara falar com ele.

Ele evitava sentir aquela dor, lembrando de momentos do passado. Logo, percebeu o erro que cometera. Quanto mais nela pensava, mais raiva ficava. Pediu outro copo de whisky à atendente de bordo e a senhora ao lado já julgava: "Alcoolismo" - pensou - "Que nem com o filho da vizinha, que Deus o tenha. Coitado, vai beber até morrer" - fechou os olhos e fez o sinal da cruz.

De repente, uma turbulência começou a agitar o avião. Não era uma turbulência normal para aquele voo. Enquanto alguns passageiros gritavam, o homem finalmente se sentiu em paz. Pensar em morte e no avião caindo, parecia um sonho lindo. Mas, aos poucos, a consciência foi voltando, junto com o fim da turbulência. Voltou a repassar o plano que se formava na cabeça e percebeu que já não tinha volta.

As provas eram claras. Ela não tinha mais tempo para falar com ele nas últimas semanas. Sempre dando desculpas. Logo agora. Logo no momento que atingira o sonho de sua vida. Logo agora que conquistara o cargo que tanto lutou. Como ela poderia ser tão distante?

O homem sempre fora ciumento e neurótico. Afinal, sua esposa era realmente linda. Ele começou a pensar na aparência dela. O padrão de beleza mais procurado pela sociedade. Bonita, loira, um corpo dos sonhos. Mas o "problema" maior era que sua esposa não era apenas um rosto bonito. A sua inteligência e personalidade eram características sedutoras demais para o homem conseguir controlar sua paranoia dentro daquele avião. Trabalhadora, ela era dona de uma ONG que alimentava famílias pobres na África. Ganhava pouco, a maior parte de comissões. Aquilo o irritava, mas ele não falava. Sabia da importância daquele trabalho para ela. Mas tudo isso passou a não importar mais depois daquela ligação.

Ela achara que ele já havia partido para pegar o avião para Brasília, mas o homem voltara para pegar seu inseparável relógio Rolex que havia esquecido, e ao fundo, começou a ouvir uma conversa ao telefone. Era sua esposa.

- Sim, tudo certo. Hoje às 16h. Não, ele já foi embora. Vai dar tudo certo. Te espero. Estou muito ansiosa com tudo também.

Aquelas palavras mudaram sua vida. Sempre sentira muito ciúmes de sua esposa, e uma parte dele sempre temera que esse dia chegaria. Ainda era cedo para tirar qualquer conclusão. O homem, louco de ciúme, ligou 16h para sua esposa naquele dia e ela não atendeu. Horas depois, ela ligou. Parecia cansada, ofegante, como se tivesse saído de um exercício aeróbico.

O Homem e a MulherOnde histórias criam vida. Descubra agora