A Mulher

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Seu marido, com sua frieza habitual, se despediu como se fosse apenas ao supermercado. Para a mulher, era apenas uma das mil coisas que a mutilavam por dentro pouco a pouco. Mesmo assim, amara seu marido em algum momento.

"Amor não se escolhe", falava a vida inteira. Mas com 28 anos, já não pensava da mesma maneira. Apesar disso, se casara. Um filho tinha com ele. O trauma do passado de viver sem um pai, travava uma feroz batalha em sua mente contra a raiva dos abusos do marido.

Mas a pior raiva não era do "querido" esposo. Era dela mesma. A mulher amou o homem como é possível amar alguém. Por um tempo se sentira em um conto de fadas, vivendo numa casa de chocolate e confetes. Sua casa e sua vida foram derretendo com o passar dos anos, após seguidas demonstrações de violência e intolerância de seu marido. A mulher tinha convicções e princípios muito bem definidos. Ela sentia-se abusando de si mesma estando com um homem pelo qual ela não possuía admiração alguma.

Após o marido alcançar o cargo dos sonhos, as coisas pioraram. Mesmo assim, impulsionada por sua mãe, que amava o genro e tolerava suas atitudes, decidiu fazer uma festa surpresa para o homem. Doía, mas uma conquista desse tamanho era boa para a família. Seria bom para o filho que amava o pai. E, no fundo, não se importava mais. Decidiu que seu coração estava pronto para dar a festa. Pelos seus próprios motivos.

Seu marido iria chegar na manhã de sábado. Durante sua estadia em Brasília, o homem agiu estranho, o que deixava a mulher com mais raiva. A lembrança das agressões que eram sempre "sem querer", aquela voz agressiva que empalava seu coração, aquela chantagem emocional por sua posição profissional e aquisitiva. Tudo isso doía. A mulher pensou em seu marido na África, como um dos membros da gangue que no momento assolava tribos de refugiados para roubar comida, sem restrições de ferir ou matar. "Ele seria um deles, ele escolheria o caminho da morte".

Ela pensou de o porquê estar fazendo tudo aquilo e atendeu a porta para o Padre da igreja da sua mãe. Um jovem alto, que orgulhoso e simpatizante de seu marido, havia feito uma espécie de conluio com sua mãe para preparar a festa para o homem. Tudo isso contra a sua vontade. "Não tenho controle sobre minha vida" - lamentou. Já não era o primeiro dia de arrumação da "festa". Já tinha tempo que estava cansada. "Eu aguentei demais" - ela se dizia, lembrando dos chutes na barriga que tomava do marido.

Voltando ao presente, ela percebeu que a nova realidade era pouco melhor, e que teria que passar a noite de sexta arrumando uma festa para seu marido abusivo. Já não queria ter um "promotor de festas", e ter que montar um evento surpresa em plena sexta, era tudo de que ela não precisava.

Quando finalmente terminou de pendurar a última faixa, suando e cansada, seu marido ligou. Puxando o ar, a mulher falou repetidas vezes: "Alô? Alô?". Não obteve resposta. Agradeceu ao Padre pela ajuda com um abraço e, de repente, ouviu o barulho da porta se abrindo.

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