Quebra-molas

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— Ah! Que maravilhoso dia!
O céu azulzinho, sem nuvem, a temperatura perfeita.
— Condições ótimas para um passeio de bike. — Algo normalíssimo para um campeão de corrida como eu.
Resolvo mesmo fazer isso. Pego meus equipamentos: capacete, joelheira, óculos de proteção, tênis, short esportivo, ombreira, luvas, garrafa d'agua, minha camisa do náutico, etc etc. Um pack inteiro de coisas de ciclista profissional e campeão de várias medalhas. Vestido, vou em busca de minha companheira quase inseparável. Muitas vitórias vividas juntos. Acho-a paradinha em seu santuário habitual — a área de serviço do apartamento. Estava executando uma tarefa distinta da original — a de varal — certamente obra de minha mulher. A coitada me olhava com olhos de súplica, falando em sua voz fininha de bicicleta: "Me leva para passear". E eu respondo, com voz de locutor:
— Sim, minha querida. Papai fará isso. — Já a libertando das roupas que a cobriam. Guiando-a até a porta, para liberdade!
— Vai andar de bicicleta? Que milagre é esse? — Era minha outra companheira.
— Como assim mulher? Não sei do que está falando — respondi, me dirigindo a porta.
— Pera aí, onde você pensa que vai?
— Vou sair com Vitória.
— Quem é Vitória?!
— Calma, mulher! Vitória é a bicicleta!
— Ah, bom...
— Sim. Agora tenho que ir, Vitória e eu precisamos treinar para o próximo campeonato.
— Que campeonato homem? Tu quase não sai de casa…
Deixei minha mulher para trás, com suas maluquices. Ela não sabia, mas eu realmente sou uma estrela do ciclismo. Tenho mantido sigilo durante 20 anos. Ela nunca casaria comigo se soubesse que sou famoso! 
Vitória estava sedenta por ar. Fazia uns anos que… dias, quero dizer. Faziam dias que ela não saía. Cheguei na frente do elevador, Vitória queria apertar o botão para o térreo — estava muito inquieta!— mas eu não deixei. Esperei alguns segundos, no entanto o elevador não abria. Achei estranho. Apertei outra vez, nada. Séria o destino?
— Não… eu vou sair de bike sim! — resignei-me.
Peguei Vitória e me dirigi a escadaria. Parei no topo, olhando para baixo. Como se descia escadas com uma bicicleta? Na cabeça, debaixo do braço ou montado em cima dela? Montar nela era tentador e parecia o jeito mais rápido, porém senti que não muito seguro. Carrega-la na cabeça também não, era muito pesada. O jeito era usar os braços.
Segurei-a como se carregasse um cão. E pisei no primeiro degrau, depois no segundo e no terceiro. Quando fui pisar no quarto, Vitória escorregou e rolou escada a baixo. Coitadinha! Corri a acudi-la. Pensei que tinha morrido, a azarada! No entanto, quando cheguei perto e examinei seu corpo magrela, nada além de pequenos arranhões. Tornei a descer e passei pelo porteiro carregando Vitória.
— Bom dia senhor! — me cumprimentou.
– Bom dia. — parei para responde-lo.
— Tentando uma vida mais saudável, senhor?
— Em?
— Não é o senhor que só sai de carro e…
Saí do prédio. Esse porteiro, sempre fazendo piadinhas! O dia estava realmente lindo, enchi os pulmões com ar fresco. Posicionei vitória no chão e subi em sua cela. Podia sentir… com ela eu rodaria o mundo, venceria todas as corridas! Encaixei o pé no pedal e parti. Vitória e eu rumo a liberdade.
Por vários minutos enveredei tranquilo ruas das mais diversas formas, larguras e texturas. Me sentia ótimo! Nenhum pouco cansado!
Estava saindo de uma rua estreita, pavimentada com parelepipedos, quando vi uma movimentação à frente. Parei a bike e chamei a pessoa mais próxima, queria perguntar o que acontecia.
— É uma corrida de ciclismo. — me respondeu o jovem.
— Corrida? Como não fiquei sabendo disso?!
— O senhor corre?
— Corro. Não me reconhece de algum lugar? — perguntei, descendo de cima de Vitória.
— Não senhor. Deveria?
— Pois sim. Sou um ciclista famoso, venci várias corridas.
— Nunca lhe vi. E olha que acompanho com frequência essas coisas.
— Não tem problema, agora o senhor conhece. Bem, tenho que correr. — Informei.
— Mas…
Avancei devagar pelo meio das pessoas, parafusando a bicicleta quando a multidão apertava e entrei na pista. Vitória faria jus ao nome, eu pressentia! Montei. Apertei o capacete e pisei fundo no pedal, os olhos das pessoas cheios de admiração. Era a hora de brilhar! Me inclinei no guidom da bike e botei força na pedalada. A agilidade, a destreza, os movimentos sincronizados, todas essas características fluíam por meu corpo. Pouco tempo depois, avistei um adversário. Vitória deu uma guinada para trás e partiu furiosa para cima dele, querendo ultrapassa-lo. Ele percebeu e acelerou sua bicicleta. Mas Vitória não permitiria, avançou ainda mais furiosa do que antes, de maneira que ficamos lado a lado em poucos segundos. Os olhos ao redor seguiam com espanto a disputa acirrada entre o competidor e eu. Por fim, não resistiu a minha destreza. Sorri vitorioso, jogando poeira na cara do meu adversário que ficava para trás; continuei em frente, rumo a linha de chegada. Fiz uma curva, entrando numa rua estreita, rodeada de casas antigas. Chegando ao fim dela, virando a esquerda, contemplei-a: A CHEGADA! O público ao me ver urrou incentivos. A vitória era certa! Pedalei mais forte, encarando a linha de chegada nos olhos, sem piscar. Estava me aproximando, aproximando, aproximand… De repente vi o mundo de cabeça para baixo, depois mais nada.
Acordei no hospital. Minha mulher do lado da cama.
— Ah! Graças a Deus! — exclamou, me abraçando.
Não estava entendendo nada, mas devolvi o gesto de carinho.
— Tu ficou doido, homem?!
A atmosfera mudou bruscamente. Como se espetassem um balão com uma agulha.
— O que você tem na cabeça para sair por ai e…!
— Calma! Calma! O que foi que aconteceu? — falei.
— O que aconteceu?! O que aconteceu?! Ora, Gilberto! E você ainda pergunta!
— Claro! Não estou entendendo nada! Por que eu tô no hospital? Eu não estava em uma corrida de bicicletas?
— Aaah! Então você se lembra!
— Sim, Magnólia! Sim! Dá para responder por quê raios estou aqui?
— Simples, Gilberto. Simples! Você entrou de penetra no meio de uma competição, quase derrubou um ciclista oficial da corrida, caiu da bicicleta e desmaiou.
— Caí de Vitória?!
— Quem é Vitória?!
— A bicicleta!
— Ah, bom!… Mas isso não é tudo. Segundo testemunhas, perto da linha de chegada tinha um quebra-molas; então, quando você passou por cima dela, a bike simplesmente desmontou…
— Pobre Vitória! – Lamentei baixinho, pensando em minha bicicletinha em pedaços…
—Aí você deu uma pirueta no ar e caiu de pé no meio da pista.
— Caí de pé? Mas então porque desmaiei?
— Segundo o médico, excesso de esforço físico.
— Puxa… — limitei-me a dizer, envergonhado.
— Mas também né, Gilberto! Você nunca se exercita, e quando decide fazer isso, se presta a uma palhaçada dessas! Eu sei que você tem diploma de ator, mas também não precisava tanto!


— Mas também né, Gilberto! Você nunca se exercita, e quando decide fazer isso, se presta a uma palhaçada dessas! Eu sei que você tem diploma de ator, mas também não precisava tanto!

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Crônicas de "terror" CotidianoWhere stories live. Discover now