Três

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 Acabou que Laura, a tia, decidiu ficar até o fim da tarde. Esperei em um canto da sala de estar, ouvindo a conversa entre a mãe e sua irmã. Ouvi quando o pai chegou, fechando a porta rapidamente para que o vento não entrasse.
 Brincando com o presente de Laura, Eric não prestava atenção em mais nada, enquanto que eu não conseguia tirar os olhos dele, pensando no que ele dissera para mim, ainda que de forma indireta.
 Fico imóvel por horas, apenas ouvindo sobre o que falavam. Eric, família, amigos do colegial, viagem para as Ilhas Galápagos. As palavras entravam por um ouvido e saíam pelo outro.
 Só quando o relógio marcou 16h30 que eu pude sair de casa, junto com Laura. As duas mulheres pareciam tão entretidas com as notícias que eu poderia ter virado a maçaneta e saído o quanto antes. Eric brincava. O pai estava na cozinha preparando alguma torta para a sobremesa da noite. Eu poderia ter tentado, pois ninguém estava prestando atenção na entrada. Mas o medo de ser descoberta era maior que minha vontade de encarar as consequências dos meus atos.
 Neste exato momento, estou testando minhas flechas, vendo se as pontas estão afiadas e se estão com a espessura exata. Embora eu as fabrique feito uma máquina, é difícil acertar de primeira. A maioria precisa ser analisada uma segunda vez.
 Não adianta, o chão permanece frio. E mesmo que eu passe a noite inteira na mesma posição, o chão ainda continuará gelado. Não estou reclamando, isso realmente não me incomoda. Não sinto nada. Meu corpo mantém a temperatura. O que eu sei do mundo é o que chega para mim, e todas as coisas são neutras.
 Agora chega a pior parte do procedimento. Pego a faca que eu trouxe comigo quando me mudei para o sótão. Ela já está comigo há anos, mas não parece velha. Na verdade, nunca pareceu tão limpa e reluzente como agora.
 Banhar as pontas das flechas com meu sangue é preciso. Embora Cupidos não tenham emoções, foram criados com Amor. Fomos feitos pela substância e, espero, seremos dissolvidos por ela.
 Pressiono a faca sobre a palma da minha mão. O material também é frio, e cheira como uma versão simplificada da morte. Faço um movimento rápido. Em seguida, vejo uma linha fina, que se rompe para dar passagem ao sangue. Sangue dourado.
 Sem nem mesmo usar um pote pequeno, pego flecha por flecha e passo as pontas no sangue com muito cuidado.
 O sangue humano e o sangue de um Cupido são bem diferentes. Não só pela coloração, mas também pela textura e componentes. Meu sangue é mais diluído, e tem a capacidade de curar e acender a vida de uma pessoa, dar a ela uma motivação, que é o Amor.
 Nesse momento, sinto o líquido descer até o pulso. O vento está mais forte agora. Não posso fechar a janela, pois é muito cedo. O dia ainda não terminou.
 Mas esse vento não é natural. Alguém está provocando essa sensação fria, como se estivesse tirando, aos poucos, o calor.
 Ouço o ruflar das asas. Já sei quem é antes mesmo de ouvir sua voz.
- Seis.
 Quando eu era apenas uma criança, morava em um lugar totalmente diferente. Era 1122, e eu me lembro de correr muito, saltitando e tirando meus pés do chão por mais que alguns segundos. Por mais que eu tente forçar a minha cabeça, por mais que eu queira reconstruir o cenário, não consigo. Já faz muito tempo. Tudo o que eu via era o branco, o simples branco, só que, de alguma forma, eu não acredito que construíram uma civilização nas nuvens.
 Alguém chegou a puxar o meu braço, parando-me de imediato. Foi a primeira vez que eu ouvi meu nome saindo em alto e bom som, e foi como se o mundo parasse. Era novo, único. Seis.
 Cresci um pouco mais. Começava o meu treinamento. Tive que deixar aquele lugar de boas aventuras e me habituar a viver no chão.
 Eu não entendia, era muito nova. As pessoas passavam por mim e não me enxergavam. Eu as cumprimentava, e o máximo que recebia era um grito. Por todos os cantos, eu ouvia o meu nome saindo de lábios desconhecidos. Não só Seis, mas também Oito, Onze, Um...
 Eram todos Cupidos.
 Demorei um pouco para descobrir que são números. E as pessoas os usam sempre que podem.
 Eu era um número. E continuo sendo um número.
 Deixo o trabalho de lado para receber Azul. Abaixo a cabeça como sinal de respeito. Olhar para Azul ainda é difícil, não só pelo rosto inexpressivo; Azul é... bem, azul. Tudo nela parece um grande letreiro lápis-lazúli; sua pele, a cor dos olhos, as asas pequenas, seu vestido cheio. Se eu não soubesse que ela é Cupido, apostaria que a cor do seu sangue também seria azul.
 Meus olhos estão focados em seu sorriso, a única coisa no visual que quebra todo o padrão. Os dentes parecem bastante afiados e, por um breve momento, pergunto-me se um Cupido deveria ter uma aparência assim.  Talvez seja mais comum do que imagino, mas ainda assim, sinto que há algo errado.
 A voz de Azul é aguda e estridente. Às vezes, preciso me segurar para não tapar os ouvidos.
- Posso ver que está trabalhando.
Azul passa por mim a passos lentos. Ela pega uma das flechas e a examina, sua postura inalterada. Quando seu rosto procura novamente pelo meu, vejo faíscas em seus olhos.
- Falta um pouco mais de sangue, querida.
 Percebo que seus olhos param na minha mão direita. Olho para baixo, curiosa para ver o que prendeu a atenção da minha tutora, e vejo uma pequena poça dourada se formando. Poça de sangue. Meu sangue.
- Você precisa fazer um curativo. Não quer sangrar até morrer, não é?
 Minha garganta está seca. Eu sei que preciso continuar calada.
 Vou em direção ao velho armário do sótão. Ele está todo deteriorado. Alguns pedaços da madeira soltam com o simples toque. Eu não ficaria surpresa se ele tombasse apenas com um sopro de ar.
 Abro o móvel fragilizado e pego meu rolo de ataduras. Começo a envolver minha mão, sem nem mesmo ter lavado o corte.
- Sabe o motivo de eu estar aqui, Seis?
 Ainda continuo sem dizer nada. Os anos me ensinaram que Azul não busca uma resposta de verdade. É apenas um jogo psicológico. Ela quer que eu sinta mal pelos meus erros.
- Querida, olhe para mim.
 Por um momento, acho que entendi errado. A voz é mais amistosa, quase que maternal. Olho para Azul, parada diante de mim, com as mãos juntas em sinal de prece. Ela parece com os anjos que as pessoas retratam. Uma pintura perfeita preenchida por diferentes tonalidades de azul.
 É estranho ver Azul assim, tão pequena. Parece estar com medo de falar. Por fim, ela diz:
- O Conselho deseja abrir uma reunião com você.
- O Conselho? – não consigo evitar, minha voz sai muito mais aguda do que pensei que sairia.
- Achou que poderia esconder o que está acontecendo? Isso é um problema sério.
 Também não consigo evitar: começo a gaguejar.
- Eu sei... eu sei. Mas eu... eu não fiz por querer.
 Minha tutora suspira e relaxa os ombros. Ela até arrisca um sorriso solidário, mas sai estranho.
- Sei que você não teve a intenção. Mas eu não posso simplesmente fingir que seus erros são toleráveis.
- Tudo o que eu fiz foi para ver as pessoas felizes.
- E isso é ótimo. Ótimo mesmo, de verdade. Só que haverá consequências. Casais viverão juntos infelizes pelo resto de suas vidas. Jovens tentarão o suicídio, e não há como trazê-los de volta depois disso.
 Desvio o olhar. Não é como se eu não soubesse que cada pessoa nasce destinada a ficar com outra. Só que não há uma placa sinalizando quem deve ficar com quem, e às vezes, eu cometo erros. Erros terríveis, é claro, mas não propositais.
- Não posso esconder algo tão importante dos Guardiões. No entanto, se bem sei, eles já devem saber de tudo.
 Engulo com dificuldade. Os Guardiões são ainda mais severos que Azul.
 Tento sufocar a pergunta, mas não consigo:
- O que vai acontecer comigo?
 Uma breve pausa. E então ela diz:
- Para ser sincera, não faço a menor ideia.
 Azul separa a distância entre nós e me conforta com um aperto no ombro. Quando a encaro novamente, sua expressão é mais comedida e sincera.
- Quero que saiba de uma coisa. Não irei desistir de você. Ser Cupido não é trabalho fácil.
- O que isso significa, exatamente?
- Significa que você não poderá controlar os cursos da vida. Você irá partir alguns corações pelo caminho.
 O que mais eu posso dizer? Não desejo um coração quebrado nem para o meu maior rival.
- Contataremos quando for a hora certa. Até lá, um novo casal espera por você.
 Assim como chegou, Azul vai embora em um piscar de olhos. Ela nem ao menos se despede.
 Pego a flecha sob meus pés. Um nome está cravado em sua haste. Ainda tenho um trabalho para manter antes de ser dispensada pelo Conselho.
 Dispensada. Não foi o que Azul disse para mim, mas presumo que eles irão me descartar. Como uma experiência que não deu certo.
 Sento-me no chão novamente, sem perder tempo. Tiro as ataduras que envolvem minha mão e vejo se o corte que eu fiz já está fechado. Por via das dúvidas, crio um novo sobre este último.

CupidoKde žijí příběhy. Začni objevovat