Capítulo 2 - Hotel Bauer

138 27 54
                                    


      A investigação foi realizada com êxito. Tudo havia sido armado.
      No dia cinco de janeiro, a polícia encontrou os homens que roubaram a vida de Elijah no bar de Paul Colin e eles confessaram o crime. De acordo com o depoimento, o herdeiro do império reagira a um sequestro e, por reflexo, o capanga de vinte e dois anos, Jason Nicole, disparara três balas. A primeira acertara o balcão. A segunda acertara a quina da estante de licores. A terceira acertara em cheio a testa do Farloth. Nicole disse para o detetive que o homem havia despencado sobre a mesa de mármore com os olhos bem abertos, com a cabeça sobre o sangue recém derramado de seus miolos. Depois, eles se livraram do corpo na brasa. Ninguém duvidou e Elijah foi, de fato, declarado morto. Não era refutável. A história era perfeita. Estava tudo na câmera de segurança, cuja filmagem fora adulterada por um programa de computador, que o barman entregou às autoridades naquela madrugada fria do terceiro dia do ano.
      Porém, a história contada nos telões não era a verdadeira e, por isso, não era digna de lágrimas.
      Depois da grande Companhia Farloth, na hierarquia capitalista, vinha a Companhia Beaufort. Durante décadas, ambas lutaram pela liderança no desenvolvimento de inteligência artificial, o pilar da sociedade desde 2045. Entretanto, o império branco e azul encontrou a supremacia durante o controle de Louis Farloth, o avô de Elijah e Piper, e isso fez com que os Beaufort deixassem a ética para trás. Assim, nasceu uma intensa troca de farpas e a criação de boatos sem qualquer sustentação lógica.
      A maioria dos economistas de Yahuit imaginavam que o influente Elijah assumiria o poder da Farloth depois do falecimento de Louis. Foi uma surpresa para a imprensa descobrir a morte do herdeiro apenas uma semana depois do ocorrido. Para alguns, era uma conspiração. Uma conspiração que ia mais fundo do que se podia teorizar.
      A verdade era que, a gangue de cinco homens que fingira atentar contra a vida de um poderoso não o fizera de forma espontânea. Leblanc, Callegari, Martin, Jones e Nicole foram coagidos pela Beaufort para, realmente, assassinarem Elijah Farloth no bar de Paul Colin. No entanto, no mundo dos negócios, o prêmio vai para quem está disposto a retirar o maior valor do bolso. E quem fez isso, nesse caso, foi o próprio alvo.
       Dessa forma, Elijah pôde forjar sua morte sem realmente sujar as mãos de alguém. Os homens, remunerados em dobro, mentiriam para a Companhia Beaufort e esta, por sua vez, faria acordos que não os deixariam ficar mais de duas semanas encarcerados. Então, o rumo do mundo prosseguiria sem dívidas.
       O único aspecto do plano que Elijah sentira na pele foi pensar no luto da bela Lauren Haas. Ele pensou no xale preto de lã, que ela usaria para cobrir os ombros, e no buquê de gérberas amarelas que ela colocaria em seu túmulo vazio. A postura fechada que ela teria para que não lhe dissessem nada. De longe, ele assistiu ao próprio funeral. Assistiu o céu nublado da sexta-feira, as lamentações em vão e as lágrimas de crocodilo que caíam dos olhos de Piper em uma atuação medíocre. Ele riu quando Phillip Beaufort, o cara que queria sua cabeça, abraçou seus tios e os desejou bençãos eternas. Então, Elijah constatou que um Farloth não seria nada se não estivesse sempre a um passo a frente do destino.
      Depois do funeral, percorrendo uma rua estreita do distrito de Becker, o homem morto seguiu a mulher de botas pelo centro comercial. Por aquele caminho, ambos chegariam ao decrépito Hotel Bauer em poucos minutos. Quando o cheiro de fumaça se tornou forte o suficiente para perturbar as narinas e as cores se tornaram vivas o bastante para se resumirem em um incômodo, Lauren e Elijah perceberam sua presença no submundo de Yahuit. Era como se aquele lugar tivesse parado no tempo. 
      Escandalosos, dez homens bebiam na entrada do quarteirão, com gomas de mascar grudadas nas cadeiras. As paredes dos prédios eram uma mistura de sujeira aglomerada, rabiscos e declarações de ódio feitas com facas e fósforos. Crianças corriam, descalças, pisando sobre os bueiros mal projetados. A sirene que comandava os operários da usina ecoou e, então, quatro dos cinco homens que almoçavam na calçada formaram uma fila extensa. O quinto permaneceu no mesmo lugar. Aquele velho de bochechas fundas, debilitado, penetrou a atenção na íris de Elijah como se gritasse. Ele estremeceu.
      O frontal do Hotel Bauer era de um bege mórbido com grades enferrujadas e um vitral que estava trincado há mais de duas décadas. Era estranho pensar que aquele lugar já havia sido considerado o melhor hotel da metrópole, antes da designação de um submundo, e agora, não passava de uma construção desvalorizada. Enquanto se esgueirava pela cerca metálica, Elijah viu a mão pequena da mulher de xale abrir a porta da frente e, então, fez o mesmo.
      O interior do Bauer não era muito diferente da área externa. Claramente, não havia ferrugem nos objetos ou folhas secas no chão. No entanto, as rachaduras nas paredes e a arquitetura primitiva eram motivos para a comparação. Visivelmente desconfortável, Lauren se aproximou do balcão e viu um garoto de pouca idade sentado na cadeira giratória, distraído, mordendo uma caneta com os dentes da frente. Ele saiu do transe quando Elijah também se aproximou, com olheiras profundas em torno dos olhos. Envergonhado, Tyler, o filho mais velho do dono do hotel, endireitou a postura e se dirigiu a mulher.
      —Bem-vinda ao Hotel Bauer —ele disse.—O que deseja?
      Era fácil presumir que Elijah e Lauren não se conheciam. Não havia toque, palavra e nem sequer um olhar. Sutilmente, ela pigarreou.
      —Um quarto, por favor.
      O menino tirou um aparelho eletrônico de dentro da gaveta esquerda do balcão e a imagem do quarto 47 foi reproduzida em um holograma azul ciano. Com a caneta, ele clicou na figura do ambiente de duas camas. Uma ficha de informações foi exibida. Desde os cinco anos, Tyler tinha muita habilidade com a tecnologia ancestral utilizada no Bauer e, por isso, era integralmente responsável pelo hotel nas sextas-feiras.
       —O quarto 47 acabou de ficar disponível. —Disse o garoto, concentrando-se no holograma.—O seu nome e identidade, por favor.
       Lauren iria entregar sua identidade se Elijah não a interrompesse. O homem de capuz tirou o documento falso do bolso e esticou o braço, fazendo com que o cartão revestido por vidro tocasse os dedos do menino.
      —Jamie Blanchard, uma diária. Ela é Mary Kalisch, mas já está de saída.
      Tyler sorriu, passando o cartão pela máquina do sistema. Pelo canto do olho, Lauren observou o moletom acinzentado. Naquele segundo, ela percebeu que Elijah cavava sua cova mais e mais fundo.
      —Podem subir. —Tyler entregou o acesso nas mãos do homem. —O café da manhã é servido às sete.
      Elijah sorriu para o menino, tocando a mulher nos ombros de maneira branda. Juntos, caminharam em direção à coletânea de degraus tingida de branco fosco. A escadaria de corrimãos prateados parecia não ter um fim. Quando estavam perdendo a esperança, o quarto andar apareceu.
      O corredor era comprido, mas a ausência de janelas implicava em uma constante sensação claustrofóbica. Justamente pela precariedade, o Hotel Bauer era a melhor opção para um encontro sigiloso. Tirando o objeto das mãos do homem, Lauren passou o cartão na entrada do quarto e abriu a porta. O guarda-roupa, empoeirado, era igual ao que se fazia presente nas fotos de infância de sua bisavó paterna, enquanto as camas eram quase tão modernas quanto as de um hotel de luxo nos bairros requintados de Yahuit. O ambiente deslocado refletia a situação de uma forma exemplar. Como dois quebra-cabeças de figuras distintas dentro da mesma caixa.
      Elijah trancou a porta. Lauren, enchendo os pulmões, cruzou os braços e caminhou para o vão entre as camas. Enquanto as sobrancelhas da mulher se mantinham incrédulas, o homem de relógio soltou o ar pelas narinas como se fosse fogo. Sentando-se sobre a primeira cama, ele apoiou os cotovelos nas cochas e tocou a própria nuca com as mãos. Dirigindo-se ao homem, depois de um breve silêncio, ela encarou seus sinais de estresse com certa apreensão.
      —Eu não tinha entendido o seu recado até receber a notícia de que estava morto —ela disse. —Elijah, o que está acontecendo?
      Então, Farloth prendeu a atenção nos olhos de Haas como se ela fosse uma manhã ensolarada e ele, uma ressaca forte.
      —Eu não vou te envolver nisso —ele respondeu. —Mas, preciso que me faça um favor.
      Ela passou a língua pela superfície dos lábios e sorriu, mas não de alegria.
      —Sério? —Lauren negou com a cabeça, tocando os braços cruzados com a ponta dos dedos. —Eu cansei de te fazer favores sem saber do que se trata.
      A mulher de xale olhou para Elijah e, por um momento, acreditou que ele mudaria sua palavra. Porém, ele persistiu no silêncio, respirou fundo e tirou a atenção das íris castanhas. Sutilmente, ela sacodiu a cabeça e caminhou em direção à porta.
      —Eu vou embora.
      —Eu pago. —Elijah ficou de pé. —O quanto você quiser.
      Se a indignação tivesse um rosto, teria os olhos descrentes e as maças acaloradas de Lauren Haas. Ela revelou os dentes com escárnio.
      —Você realmente pensa que pode comprar tudo. É decepcionante saber que, depois de todos esses anos, continua me vendo como a porra de um peão. Eu não quero saber do seu dinheiro sujo, Elijah.
      Ele engoliu em seco. Por conseguinte, aproximou-se de Lauren, colocou uma mecha castanha atrás de sua orelha e, com delicadeza, inclinou o maxilar da mulher em sua direção. Ela pôde sentir o calor da respiração dele na superfície de seus lábios. Seu maior anseio era que seu coração parasse de acelerar ao ver aqueles olhos turquesa e sentir aquele cheiro amadeirado intenso que ele tinha no pescoço. Elijah a manipulava de formas amenas e evidentes ao mesmo tempo. Entretanto, ainda que também a desejasse, ele nunca seria dela por inteiro. Ou, então, o controle sairia totalmente de suas mãos.
       —Logo eu vou te contar tudo —ele sussurrou. —Eu juro.
       Lauren assentiu com a cabeça e Elijah a tocou pelo queixo, depositando os lábios em sua testa ávida. Depois, ele a guiou para que ambos sentassem sobre a cama ao lado da janela.
       —Nesse momento, os Beaufort devem estar atrás da minha irmã —ele explicou. —Quero que a vigie e me diga se perceber algum contato suspeito.
       A mulher, de vestido escuro, franziu o cenho.
       —Eu não sou tão próxima da Piper, ela desconfiaria de alguma coisa. —Lauren se queixou. —Ela pelo menos sabe que você não está morto?
      Elijah negou com a cabeça.
      —Faça com que ela não desconfie —ele disse. —Além disso, preciso que descubra tudo sobre Jack L. Bernard.
      A dúvida correu pela face de Lauren.
      —É um homem dos negócios?
      —Um contrabandista —ele respondeu.
      Ela franziu o cenho, perplexa.
      —Por que um simples contrabandista te causa tanto interesse?
      Elijah hesitou ao responder.
      —Ainda é cedo pra dizer —ele suspirou.
      Houve um breve silêncio, no qual o estresse do homem se tornou evidente. Assim, Lauren tirou a bolsa do colo e se levantou. 
      —Eu volto amanhã com o que conseguir.
      A mulher respirou fundo e pegou o cartão de acesso em cima da cômoda. A voz rouca de Elijah veio como uma chama em seu tórax.
      —Lauren —ele chamou. —Obrigado.
      Ela sorriu para ele, sem exibir os dentes, de modo com que os olhos ficaram apertados. Ainda quieta, ela destravou a porta, deixou o cartão em cima do móvel e abandonou o quarto 47. Sentando-se sobre a cama, Elijah soltou o ar dos pulmões, tirou o casaco e voltou a apoiar os cotovelos nas pernas. Então, abriu a caixinha de comprimidos que estava em seu bolso e observou o metal da superfície refletir sua própria face. Pegou o pequeno comprimido magenta nos dedos, mas logo o guardou de volta. 
      A sujeira dos Farloth sempre o perseguiria.
        
        
       
       
       

3021Where stories live. Discover now