Capítulo XI - A História de Leslie Moore

336 37 0
                                    

"Sim, o oitavo bebé já chegou há duas noites," disse a miss Cornélia, sentada numa cadeira de baloiço da pequena casa numa tarde fria de Outubro. "É uma rapariga. O Fred ficou louco, disse que queria um rapaz quando a verdade é que não o queria. Se fosse um rapaz tinha resmungado por não ser rapariga. Eles tinham três raparigas e quatro rapazes, por isso não vejo que diferença faz o sexo desta, mas claro que ele tinha que ser rabugento, tipico de um homem. O bebé é muito bonito, vestidinho com aquelas roupas. Tem olhos pretos e umas mãozinhas lindas."

"Eu tenho que a ir ver. Eu adoro bebés," disse Anne, sorrindo para ela mesma com um pensamento demasiado intimo e sagrado para ser posto em palavras.

"Eu também os acho queridos," admitiu a miss Cornélia. "Mas algumas pessoas têm muitos mais do precisam, acredite. A minha pobre prima Flora lá do Glen tem onze, e é uma escrava. O marido suicidou-se há três anos. Tipico de homem!"

"E o que é que o levou a fazer isso?" perguntou Anne, um pouco chocada.

"Não levou a melhor em qualquer coisa, por isso saltou para dentro de um poço. Não deixou saudades! Ele era um tirano nato. Mas claro que estragou o poço. A Flora nunca mais pôde pensar em usá-lo, coitada. Por isso mandou cavar outro; foi uma despesa terrivel, e a água é dura como pedras. Se ele se queria afogar havia bastante água na baia, não acha? Eu não tenho paciência para homens assim. Só tivemos dois suicidas em Four Winds, que eu me lembre. O outro foi o Frank West, o pai da Leslie Moore. Por falar nisso, a Leslie ainda não a veio visitar?"

"Não, mas eu conheci-a na praia há umas noites atrás, e fizemos as apresentações," disse Anne, afiando os ouvidos.

A miss Cornélia acenou com a cabeça.

"Ainda bem, querida. Eu tinha esperança que se encontrassem. O que achou dela?"

"Eu achei que ela é linda."

"Oh, claro. Não há ninguém em Four Winds que lhe chegue aos calcanhares. Já viu o cabelo dela? Chega-lhe quase aos pés quando o solta. Mas eu quis perguntar se tinha gostado dela."

"Eu acho que iria gostar dela, se ela deixasse," disse Anne lentamente.

"Mas ela não deixou, empurrou-a até a afastar. Pobre Leslie. Você não se ia admirar se soubesse como tem sido a vida dela. Tem sido uma tragédia, uma tragédia!" repetiu a miss Cornélia enfaticamente.

"Eu gostava que me contasse tudo sobre ela, se o poder fazer sem lhe trair a confiança, claro."

"Oh, minha querida, toda a gente em Four Winds sabe a história da pobre Leslie. Não é segredo, a parte exterior, pelo menos. Ninguém sabe as partes mais intimas a não ser a Leslie, e ela não confia nas pessoas. Eu sou a única amiga que ela tem, penso eu, e nunca me fez uma queixa. Já alguma vez viu o Dick Moore?"

"Não."

"Bem, então posso começar pelo principio e contar-lhe tudo de uma vez, para perceber. Como eu disse, o pai da Leslie era o Frank West. Ele era esperto e preguiçoso, um homem tipico. Oh, ele era muito inteligente, e servia-lhe de muito! Foi para o colégio, e lá esteve dois anos, até que depois adoeceu. Os West têm tendência para a tuberculose. Por isso o Frank veio para casa e dedicou-se á agricultura. Casou com a Rose Elliot do outro lado do porto. A Rose era a beleza de Four Winds, aliás a Leslie parece-se com a mãe mas tem dez vezes o espirito e a desenvoltura que a Rose tinha, e é mais elegante. Sabe, Anne, que eu acho que nós mulheres temos que nos defender umas ás outras. Já temos sofrimento que chegue nas mãos dos homens, só Deus sabe, por isso eu acho que não devemos espicaçar-nos umas ás outras, e não me vai ouvir dizer mal de muitas mulheres. Mas eu nunca achei grande graça à Rose Elliot. Ela era mimada para começar, acredite, e não era mais que uma criatura egoista, preguiçosa e queixosa. O Frank também não era grande trabalhador, por isso eram pobres como a galinha de Job. Pobres! Eles viviam de batatas e pouco mais, acredite. Tinham dois filhos, a Leslie e o Kenneth. A Leslie tinha o aspecto da mãe e a inteligência do pai, e outra coisa que não herdou de nenhum dos dois. Ela herdou isso da avó West, uma excelente senhora. Ela era a criança mais alegre, esperta e simpática quando era pequena, Anne. Toda a gente gostava dela. Era a preferida do pai e gostava muito dele. Eles eram grandes companheiros, como ela costumava dizer. Ela não lhe via defeitos nenhuns, e ele era um homem encantador em certas coisas.

Anne e a Casa de Sonhos | Série Anne de Green Gables V (1917)Onde histórias criam vida. Descubra agora