Capítulo XII

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O Gilbert teve as suas duas semanas de caça em Nova Escócia...nem mesmo a Anne o conseguiu convencer a tirar um mês...e Novembro caiu sobre Ingleside. Os montes escuros, com os abetos recortados sobre eles, tinham um ar soturno naquelas noites que cedo se instalavam, mas Ingleside florescia com risos à luz da lareira, apesar do ventos que vinham do Atlântico cantarem canções de tristeza.

"Porque é que o vento não é feliz, Mamã?" perguntou Walter certa noite.

"Porque se lembra de todas as mágoas do mundo desde que o tempo começou," respondeu Anne.

"Só geme porque há tanta humidade no ar," resmungou a Tia Mary Maria, "e as minha costas estão a dar cabo de mim."

Mas nalguns dias até o vento soprava alegremente através o bosque de aceres prateados e nalguns dias nem sequer havia vento, apenas uma luz suave de verão e as sombras tranquilas das árvores despidas ao longo do relvado, e um sossego gelado ao pôr-do-sol.

"Olhem só para aquela estrela branca por cima daqueles álamos ali do canto," disse Anne. "Sempre que vejo uma coisa destas fico tão contente por estar viva."

"Você diz coisas tão estranhas, Annie. As estrelas são muito vulgares na Ilha do Principe Eduardo," disse a Tia Mary Maria...e pensou:"Estrelas! Como se uma pessoa nunca tivesse visto uma estrela! Será que a Annie não via o desperdício terrível que reinava na cozinha todos os dias? Será que ela não via como a Susan desperdiçava os ovos e usava banha onde o óleo teria sido suficiente? Ou será que não se importava? Pobre Gilbert! Não admirava que tivesse que trabalhar de dia e de noite!"

Os dias de Novembro passaram-se castanhos e cinzentos; mas pela manhã a neve tinha tecido o seu velho feitiço branco e o Jem gritou de alegria enquanto corria para o pequeno-almoço.

"Oh, Mamã, estamos quase no Natal e o Pai Natal está quase a chegar!" "Tu com certeza já não acreditas no Pai Natal?" disse a Tia Mary Maria.

Anne lançou um olhar de alarme a Gilbert, que disse com gravidade: "Nós queremos que as crianças usufruam do seu direito a uma terra de sonhos enquanto possam, Tia."

Felizmente, o Jem não prestou qualquer atenção à tia Mary Maria. Ele e o Walter estavam ansiosos de sair para este novo mundo maravilhoso, ao qual o Inverno acabara de trazer o seu próprio encanto. Anne sempre detestara ver a beleza da neve imperturbada manchada por pegadas; mas isso não se podia evitar e havia sempre muita beleza de sobra ao fim do dia, quando o oeste se inflamava sobre todos os vales embranquecidos nos vales violeta e Anne se sentava na sala de estar frente a um bom lume. A luz da lareira, pensava, era sempre tão bonita. Tinha com cada truque, cada coisa inesperada. Partes da sala tomavam forma e tornavam a perdê-la. Imagens criavam-se e desapareciam. Sombras encolhiam e alastravam. Lá fora, através da grande janela, todo o cenário se reflectia elficamente no relvado, com a tia Mary Maria sentada muito direita...a Tia Mary Maria nunca se permitia reclinar...debaixo do pinheiro escocês.

Gilbert por sua vez estava reclinado no sofá, tentando esquecer que perdera um doente com pneumonia nesse dia. A pequena Rilla estava a tentar comer os seus pequenos punhos cor-de-rosa no seu cestinho; e até o Camarão, com as suas patas brancas dobradas sob o peito, se atrevia a ronronar no tapete ao pé do lume, apesar da desaprovação da tia Mary Maria.

"Falando de gatos," disse a Tia Mary Maria estranhamente...apesar de ninguém ter falado nesse assunto..."será que todos os gatos do Glen nos visitam de noite? Não faço a mais pequena ideia como é que alguém pôde dormir nesta casa com toda a gritaria que fizeram. Claro que como o meu quarto fica virado para as traseiras eu tive o privilégio de um concerto grátis."

Antes que qualquer pessoa pudesse responder, a Susan entrou, dizendo que tinha visto a senhora Marshall Elliot na loja do Carter Flagg e que ela ia lá a casa quando terminasse as compras. Susan não acrescentou que a senhora Marshall tinha perguntado ansiosamente, "O que é que se passa com a senhora Blythe, Susan? Eu achei-a tão cansada e preocupada no domingo passado quando a vi na igreja. Eu nunca a vi com aquele aspecto."

Anne de Ingleside | Série Anne de Green Gables VI (1939)Where stories live. Discover now