CAPÍTULO 2 - QUERO (MUITO) QUE DÊ CERTO

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Minha irmã se chama Simone de Beauvoir porque minha mãe é extremamente carismática e, antes mesmo de eu nascer, já conseguiu convencer o meu pai de que nomes de filósofos são mais bonitos do que qualquer nome comum.

Minha mãe tem esse superpoder até hoje. Nosso gatinho branco se chama Durkheim porque ela escolheu; em compensação, o nosso vira-lata caramelo se chama Yellow, mas só porque meu pai foi sozinho adotá-lo, e lá no abrigo eles faziam a certidão de adoção.

Mas minha mãe ainda vai além. Esse ano ela conseguiu convencer os meus tios em relação à escolha do nome da minha priminha recém-nascida. Agora, na família, nós somos: Karl Marx, Simone de Beauvoir, Durkheim e Angela Davis.

Para tristeza da minha mãe, nenhum de nós tem potencial para ser a voz de uma revolução — eu e Simone, porque não sentimos vontade, Durkheim porque é apenas um gato e sua principal atividade é irritar Yellow, e Angela porque ainda é um bebê e suas maiores preocupações envolvem chorar quando está com fome ou quando está com a fralda suja.

Chego em casa após a aula, e Simone está sentada no chão da sala, fazendo um challenge de maquiagem para o TikTok. Eu me sento no sofá em frente a ela pra descansar um pouco. Tive que subir pelas escadas porque a Dona Marta do 215 estava carregando toda a feira dela no elevador junto com seus dois cachorros pastores-alemães.

— Essa não é a mesma maquiagem de ontem? — pergunto, enquanto ela faz um movimento de passar a mão em frente ao rosto.

Ela pausa a gravação.

— Não, as cores são parecidas, mas os elementos são diferentes — ela pega um tubo verde na nécessaire, abre e começa a passar nos cílios.

Já me sinto descansado, mas continuo assistindo até que ela termine de gravar o challenge.

— Vai chover visualizações nesse tico-teco! — ela diz rindo.

— Deixe eu ver — falo, tirando o telefone do bolso.

Simone me fez baixar o aplicativo só pra ter mais seguidores. Entro no perfil dela e assisto ao vídeo com todas as transições acontecendo rapidamente e mostrando a evolução da maquiagem. Dou uma curtida e comento um emoji amarelo com olhos de coração.

A porta abre e já sei que são meus pais porque minha mãe começa a falar com vozinha de bebê chamando por Durkheim; o fato incrível é que ele realmente aparece correndo, pula ao meu lado no sofá e depois pula nos braços dela.

— Vocês voltaram cedo — Simone comenta, agora com o telefone levantado enquanto tira algumas selfies para o Instagram.

— Estamos aproveitando o tempo antes de começarmos a aplicar os trabalhos! — papai explica. Ele se joga ao meu lado no sofá e passa o braço sobre meus ombros.

Meu pai não tem um nome histórico, mas se chama Leonardo, o que para a minha mãe já é o suficiente — tenho certeza de que ela já tentou convencê-lo a adicionar "Da Vinci" em seus documentos —, ele é professor de Inglês. Minha mãe se chama Maria, o que para ela já está bom já que esse é um nome extremamente histórico. Eles se conheceram em um congresso do sindicato dos professores e pouco tempo depois estavam saindo juntos. Quando eu estava no sétimo ano, eles conseguiram arrumar um emprego na mesma escola.

— Falando em trabalho — mamãe diz, se sentando na poltrona ao lado de Simone e olhando pra mim. — Que dia começa aquele projeto legal do seu professor de Química?

— Amanhã — digo, soltando um suspiro. — Hoje eu conversei com Marcos e Isabela. Tenho certeza de que vou sair com eles.

— Uuuh — Simone solta um risinho. — E você tá a fim deles?!

— Não! — digo rapidamente, mas depois repenso. — Quero dizer, acho que não, eu nem os conheço direito.

Minha irmã finalmente larga o telefone e para de sorrir.

— Você não precisa conhecer a pessoa para se sentir sexualmente atraída por ela!

— A não ser que você seja demissexual — mamãe argumenta, enquanto faz carinho na barriga de Durkheim. Ela é a única que ele permite que faça isso.

— Negro, bi e ace — Simone diz rindo. — Você vai quebrar o limite de lugares de fala!

Os três riem, mas eu apenas reviro os olhos enquanto me levanto e vou para o meu quarto. Mal passo pela porta entreaberta e solto um grito:

— AI MEU DEUS, O YELLOW FEZ COCÔ NO MEU TAPETE!

Chego à escola no dia da tão esperada concretização do projeto de Química e um burburinho se espalha pelo corredor. Basta uma visita até o quadro de avisos para ver que Maria Fernanda já conseguiu a confirmação da diretora e fez o anúncio do início das audições para "Margarida e Seus Quatro Maridos e Meio" — com a data em que acontecerá e a lista dos personagens — e a galera aparentemente ficou muito interessada no evento.

É por isso que me apresso até o auditório. Mal entro e já vejo Fernanda toda animada, conversando com o restante da galera do clube.

— Todo mundo está comentando sobre — ela está falando, quando me aproximo da primeira fileira. — Vai ser um sucesso... Karl!

Quando ela grita meu nome, todos se levantam e começam a andar em direção aos bastidores, porque todo mundo sabe que eu sou o ombro oficial para os surtos de Fernanda.

Ai meu São Joaquim, acho que vai realmente dar tudo certo, Karl!

— Esse santo realmente existe? — pergunto, porque nunca ouvi falar dessa santidade antes.

— Pelo menos vinte pessoas já se inscreveram na lista que eu deixei no mural — ela continua, me ignorando totalmente. — Gustavo está terminando as edições dos vídeos e vai começar a postar hoje à tarde, o que significa que teremos ainda mais divulgação do projeto e... — ela para de falar quando a porta se abre de repente.

Agnaldo Almeida vem apressado em nossa direção. Ele é uma pessoa com nanismo e é um pouco conhecido na escola por, diferentemente da maioria dos nerds que sofre bullying, sempre reagir — sinceramente, sempre invejei a força que Agnaldo tem para ir contra todos os ataques. Vê-lo assim, vindo apressado em nossa direção, com uma expressão fechada no rosto, me faz pensar que talvez, pela primeira vez na história do universo, Fernanda tenha feito algo de errado com ele — eu estou contando que eu não tenha feito nada sem perceber.

— Quem é o responsável por essa nova peça? — Ele para a mais ou menos um metro de mim e de Fernanda.

— Sou eu — ela responde. Eu permaneço calado, tenho sérios problemas de timidez com pessoas que não são do meu convívio. — Algum problema?

— Eu posso saber do que se trata a palavra "Meio" no título dessa peça? — ele continua em tom sério. — Porque se você está falando de uma pessoa com nanismo, saiba que não somos metade de nada, somos inteiros e já sofremos demais com o preconceito para que isso seja reforçado em ambiente escolar.

Passaram-se uns três segundos para que Fernanda lidasse com o seu choque e respondesse:

— É porque um dos maridos morreu sendo esmagado e o fantasma aparece apenas com metade do corpo. Desculpe se levamos você a pensar outra coisa. A galera deve fazer todo tipo de brincadeira ofensiva sobre isso.

Agnaldo respira fundo, mas parece bem mais calmo.

— Tudo bem, eu só quis me certificar sobre isso antes que fosse tarde demais, desculpe o incômodo!

Ele se vira para sair, mas Fernanda corre até ele e coloca a mão sobre seu ombro.

— Essa sua entrada dramática foi absolutamente esplêndida! — ela fala toda animada. — Já pensou em atuar? Você seria perfeito como o irmão da Margarida!

Fico esperando que ele negue, mas Agnaldo levanta os ombros, aparentemente se sentindo interessado pelo que ela disse.

— Talvez eu já tenha cogitado uma carreira pública... Posso vir fazer o teste, se você quiser! — Ele sorri e o piercing no meio do seu lábio inferior parece brilhar junto com seu sorriso.

Pego minha bolsa e saio sorrindo do auditório, deixando Fernanda animadacom nossa nova produção.

Todos Querem (Muito) Beijar Karl MarxWhere stories live. Discover now