Prólogo

4.4K 283 834
                                    

Mordia o lábio inferior para não gemer de dor.

Felizmente, me acostumei o suficiente com o toque de Tsuchigomori-sensei para não me encolher todo. Isso me poupava levemente de explicações comprometedoras.

— Você sabe que um dia vai ter que contar quem faz isso contigo, não é?

— Não vou.

— Não foi essa a pergunta. — pontuou, começando a enfaixar meu braço — Não sente raiva da pessoa que faz isso?

     "Sim, e muita" queria responder. Mordi a língua, não querendo entregá-lo.

— Ter raiva da pessoa não vai adiantar nada. É mais simples perdoar.

— É mais simples você desembuchar para deixar de apanhar dessa pessoa de uma vez. — olhou no fundo dos meus olhos, determinado — É lindo que você queira perdoar ela, mas isso não pode continuar assim. Perdoar não implica deixar impune. Muito menos quando o seu aprendizado é afetado desse jeito por causa disso!

     Eu sabia que ele estava certo. Que, cedo ou tarde, descobririam quem fazia aquilo comigo. Que eu estava sendo prejudicado para um caramba por apanhar (fora as outras coisas que fazia comigo).

     Mas eu precisava adiar a descoberta o máximo possível.

     Assim que Tsuchigomori terminou o curativo, levantei num salto. Olhei em seus olhos, determinado.

— Apesar de tudo, eu perdôo. E o Senhor não devia se meter assim. Eu sei me virar sozinho. Mas valeu a preocupação.

     Catei minha mochila e saí correndo antes que pudesse me questionar algo. Corri sem parar até a saída.

     E, para a minha infelicidade, chovia. Não queria pegar um resfriado. E não queria que Tsuchigomori me alcançasse.

     Mordi o lábio inferior para conter minha raiva, apertando minhas mãos em punhos.

     Por que tudo de ruim acontece comigo? É o karma de alguma vida passada? Eu sou uma pessoa ruim? O Destino ficou entediado e resolveu me usar como entretenimento?

— Que chuva, né?

     Segurei um grito nada masculino de susto.

     Uma garota pouco mais alta que eu se aproximava pelo corredor. Pelo uniforme, deduzi que também era do segundo ano. Seus olhos vermelhos como a estrela Antares me chamaram a atenção.

     Ela era bonita. Mesmo com as pernas gordas, era bonita.

Ãhn ... é.

     Como podem ver, sou péssimo falando com garotas bonitas.

     Sendo sincero, não sou bom falando com ninguém desde que eu tinha doze anos. É mais fácil segurar uma barra de sabonete molhado do que manter uma conversa sem fazer alguma merda.

     E a probabilidade de fazer merda quando se está na presença de uma garota bonita quadruplica.

— O céu 'tava limpinho cinco minutos atrás. — continuou, agora ao meu lado, vendo as gotas caírem numa melodia gostosa de se ouvir — Ainda bem que eu sempre trago um guarda-chuva!

     Sacou o objeto, abrindo-o e dando alguns passos. Estremeci com o vento que soprou, abraçando a mim mesmo para aquecer-me. A garota virou, me analisando.

     Senti minhas bochechas arderam. Não gosto de ser analisado. Sempre tenho a impressão de que podem ler minha mente e descobrirem a verdade.

— Onde você mora?

     Demorei para entender a pergunta.

— Como?

— Onde é que você mora? — repetiu com mais calma, sorrindo com meiguice.

— ... Rua dos Sinos Azuis.

— Minha casa fica no meio do caminho da sua. Quer dividir o guarda-chuva? Você coloca no achados e perdidos amanhã.

     Engoli em seco.

     Uma menina bonita ofereceu dividir o guarda-chuva. Eu provavelmente ia fazer merda. Mas fazia sentido. E ela poderia ficar chateada se eu recusasse. E o Tsuchigomori poderia aparecer a qualquer minuto e exigir explicações.

— S-sim, por favor.

     Isso, seu paspalhão. Gagueja. Paga papel de idiota na frente de uma menina bonita. Belo trabalho.

     Rezando para que ela não notasse como eu tremia, segurei a base da haste do guarda-chuva. Andamos num ritmo desajeitado e lento.

     Minha cabeça estava um completo caos.

     Alguém estava há dois palmos de mim, com uma mão há milímetros da minha. Alguém que eu nem sabia o nome. E alguém que (adivinhem) era uma garota bonita. E essa garota bonita foi extremamente gentil com um garoto tamanho chaveiro e com tantos curativos que parecia uma múmia sem nem conhecê-lo.

— Bom, nos despedimos aqui. — falou, soltando o guarda-chuva e se distanciando de mim, dando-me um último sorriso doce — Pode colocar no achados e perdidos ou me dar na classe 2B, ok?

— O-ok. — gaguejei, me vendo na obrigação de completar — Obrigado.

— Não foi nada. Bom, até outro dia!

     Abriu a porta de uma casa de tijolinhos vermelhos e entrou. Fiquei encarando o vazio por um minuto inteiro, me convencendo de que aquilo era real.

— Acho que acabei com a minha cota de gentileza por um mês inteiro. — sussurrei para ninguém em específico.

     Retomei meu caminho, me preparando psicologicamente para enfrentar meus pais e Tsukasa ao chegar em casa.

"Confie em mim" [Hananene]Onde histórias criam vida. Descubra agora