Eva Diáspore é doida de pedra (Parte 1)

322 41 27
                                    

  Eu me chamo Eva e sou louca.
Não louca no sentido figurado da palavra. Louca mesmo. Do tipo que fala sozinha e atira pedras nas janelas dos vizinhos.
  Eu sou louca porque, segundo Michel Foucault, em História da Loucura, loucura é tudo aquilo que foge à normalidade. É tudo aquilo que a sociedade se certifica de jogar às margens, como aconteceu com as primeiras instituições manicominais: os leprosos eram isolados em lugares específicos, literalmente às margens das cidades, onde surgiam sociedades de leprosos.
Depois que os loucos foram impedidos de andar livres na própria loucura, centenas de anos depois de crânios partidos e lobos frontais perfurados, eu nasci. Eva. Fui diagnosticada com Transtorno Obsessivo Compulsivo Não Especificado. F 42.9, segundo o CID-10. E Transtorno Bipolar. Esse eu não sei o CID.
A minha loucura tem nome e é catalogada num manual sobre transtornos psiquiátricos. Estereotipada pela mídia. Vilanizada e estigmatizada como doença pela mesma sociedade que ainda isola os leprosos, séculos e séculos depois.

Toda essa coisa não teve um começo, mas a minha mãe começou a desconfiar depois da seguinte pergunta: "Mãe, para onde as moscas vão quando anoitece?"

"Para o inferno", ela respondeu.

Não satisfeita, eu rebati: "Mas como elas entram lá?"

"Pelas rachaduras no chão, Eva. Boa noite", então me deu um beijo e apagou o abajur.

Durante as noites que se seguiram, eu checava todas as rachaduras da casa à partir das dezesseis horas no verão e dezessete no inverno. Ficava olhando atentamente, de duas em duas, esperando ver o fenômeno das moscas voltando para o lugar de onde vieram. Às vezes ficava uma desavisada zanzando por aí após se perder das amigas em debandada ao inferno.
Eram doze rachaduras no total e eu me certificava de não pisar em nenhuma, mesmo fora de casa, ou o meu pé seria arrancado ou eu morreria ou eu quebraria a coluna da minha mãe ou o pior poderia acontecer. E tudo por minha causa. Sempre que algo ruim acontecia, eu me culpava. Foi assim quando meu cachorro morreu, quando minha avó adoeceu, quando eu precisei ficar de recuperação no verão do sexto ano enquanto todos viajavam para o campo ou para a praia e agora, aqui no setting com a Lindsay, minha psicóloga, após ter marcado uma sessão fora do meu dia de terapia.

- Uma coisa horrível aconteceu! - falei, esbaforida, após chegar atrasada para um horário que nem era meu mas ficou vago de última hora. - Na verdade, duas coisas horríveis.

- Boa tarde, Eva. Como foi pra você desde que nos vemos pela última vez há dois dias? Vamos por partes. Enquanto isso você bebe uma água, pode ser? - Ela disse, me oferecendo um copo descartável. Sempre atenciosa de um jeito que eu não mereço.

Eu respiro ofegante e me preparo para falar.

- Eu mal percebi que os últimos dois dias se passaram. Parece que eu vi você pela última vez hoje de manhã. - Ela assente - Eu não estou nada bem. Mas o que eu temia, vai acontecer.

- E o que você temia?

- Eu vou me formar. EM PSICOLOGIA, LIND! - me atiro na poltrona e enfio a cara em um travesseiro. - Mas o que eu esperava, fazendo faculdade? Como eu me atrevo?

- Bom, você está no curso há quatro anos. Quando cursamos algo, nós nos formamos, certo? Ou pelo menos é o esperado. - Lindsay diz, com serenidade - Você foi forte até aqui, Eva. Agora precisamos entender o motivo disso ser tão desesperador para você...

- A segunda coisa é que... - eu a interrompo sem querer, ainda com a cara enfiada na almofada - eu meio que...

- Você meio?

- Eu meio que enlouqueci e joguei algumas pedras para o alto e agora uma delas acertou a casa do senhor e da senhora Diaz, meus vizinhos. - Tirei o rosto da almofada, finalmente, e ela não conseguiu disfarçar a cara de surpresa de quem quer dar risada - E agora eles querem dar parte de mim na delegacia por violação de propriedade privada. Ou pelo menos foi o que a senhora Diaz disse aos berros mais cedo.

- Certo, vamos voltar a antes dos berros da senhora Diaz. Antes mesmo de você atirar as pedras. Como você se sentiu?

- Eu me senti louca. A ficha finalmente caiu, toda de uma vez. Eu vou me formar. Eu vou estagiar de verdade. O meu objetivo era só descontar a minha frustração em alguma coisa.

- E você conseguiu? - Ela perguntou e eu observei enquanto ela cruzava as pernas.

- Mais ou menos. E de bônus eu consegui chegar à literalidade da expressão "doida de pedra". - Nós duas rimos. Eu continuo - Poxa, eu vou me formar! Como pode alguém estudar durante quatro anos e imaginar que esse dia nunca vai chegar? Isso não seria tão desesperador se eu não fosse louca. Louca mesmo. Doida de pedra.

- Eva, lembra de quando conversamos sobre loucura? Eu te falei que está tudo bem não ser completamente "normal". - Ela faz aspas com os dedos - Afinal, quem realmente é? O que é normal? Você, mais do que ninguém aqui nessa sala, sabe que o que você tem é um transtorno que precisa de tratamento e que, se seguir o tratamento certinho, você pode levar a vida como qualquer outra pessoa que não tem uma condição psíquica específica.

Eu assinto.

Tudo o que Lindsay diz é verdade, mas eu não consigo me sentir menos doida, doidinha, insandecida e qualquer sinônimo para a única palavra que gira na minha mente como um espiral agora: loucura.
É assim que começa. Os episódios violentos de pensamentos intrusivos que me levam para longe de tudo ao meu redor, até de mim mesma. Começa devagar. Só uma palavra enquanto eu preciso focar. Depois a mesma palavra dez, doze, quatorze vezes. Louca. Um pensamento que leva a outro e leva a outro e mais outro até que eu esteja fundo demais para cavar até a superfície.
Então eu me vejo soterrada, dedicando minha atenção aos números e rachaduras. "Nunca pisar em uma. Duas..." eu preciso me certificar.

Me despeço de Lindsay no final da sessão e decido seguir à pé para casa. Abaixando a cabeça para ver o chão e ao mesmo tempo me certificando de não pisar em nada que vá ocasionar na minha morte ou na morte de pessoas queridas.

Lavo as mãos de duas em duas vezes - dez, doze... - até me convencer de que está tudo bem agora, mas a minha mente não para.

"Como você vai se formar em Psicologia se é louca?"

Dezesseis, dezoito...

"Como você vai cuidar dos outros se não consegue cuidar de si mesma?"

... vinte, vinte e dois...

"Como?"

Minha respiração fica ofegante e eu sinto meus ácidos gástricos na garganta.

"Você é inválida. Você não consegue."

Me lembro do exercício de respiração que Lindsay me ensinou. Me lembro que, embora eu não os reconheça, os pensamentos são meus e eu posso controlá-los se eu tentar só mais um pouco.

Inspira. Segura. 1, 2, 3, 4, 5. Expira.

Eu sou Eva Diáspore. Eu sou louca. Mas vai ficar tudo bem.

Para Onde as Moscas Vão Quando AnoiteceWhere stories live. Discover now