a feiticeira em tempos antigos

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Embora a feitiçaria europeia influenciasse a feitiçaria em modernas sociedades não europeias, estas demonstraram exercer muito pouca influência sobre o desenvolvimento da bruxaria no continente europeu. Mas as antigas civilizações do Oriente Próximo, Grécia e Roma também tinham crenças semelhantes, e dessas civilizações derivaram muitas das ideias em que se baseou a bruxaria europeia. Por toda parte se registrava certa interpenetração da feitiçaria com a demonologia. As características atribuídas a um demônio também podiam ser atribuídas a uma bruxa. Por exemplo, a devoradora megera Lilitu era um espírito, mas suas características foram transferidas na Idade Média para a bruxa diabólica.
Os sumérios e babilônios inventaram uma elaborada demonologia.
Acreditavam estar o mundo repleto de espíritos que eram, em sua grande maioria, hostis. Cada pessoa tinha um espírito tutelar para protegê-la de inimigos demoníacos. Entre os mais terríveis demônios sumérios estava Ardat Lili ou Lilitu, prima da greco-romana Lâmia e o protótipo da Lilith hebraica.
Lilitu era um espírito feminino; era frígida e estéril, dotada de asas e mãos e pés com ganas; acolitada por corujas e leões, movia-se velozmente durante a noite soltando uivos estarrecedores e seduzindo os homens adormecidos ou bebendo-lhes o sangue. Um outro demônio do sexo feminino, Labartu, saía com uma serpente em cada mão e atacava crianças e suas mães ou amas.
Contra semelhantes poderes era necessária toda espécie de magia, incluindo amuletos, palavras mágicas e exorcismos, mas sobretudo a proteção da divindade tutelar, pois “o homem que não tem um deus quando caminha na rua, o demônio envolve-o como um traje”.10 A visão de mundo do Egito Antigo era menos aterradora. Deuses e espíritos faziam todos parte de um só cosmo vivo, e nenhuma distinção era feita entre natural e sobrenatural. O feiticeiro usava sua sabedoria e conhecimentos de amuletos, conjuros, fórmulas mágicas e figuras para submeter os poderes cósmicos aos seus intentos e aos de seus clientes. Como todos os espíritos pertenciam ao todo cósmico, nenhum deles era maléfico, mas o feiticeiro era capaz de alterar os poderes espirituais de modo a causar danos aos seus adversários, assim como a obter ele próprio benefícios.
As duas fontes mais influentes do pensamento europeu foram, em geral, a greco-romana clássica e a hebraica. Os gregos criaram a filosofia e um refinado sistema de magia. A forma suprema de magia na Grécia era a theourgia, literalmente “trabalhar coisas pertinentes aos deuses”. Uma alta teurgia, mágica e benevolente, estava próxima da religião. Um grau inferior de magia, mageia, estava muito mais próximo da feitiçaria. Originalmente, o magos era um astrólogo do Irã, ou então um grego seguidor da tradição de magia superior dos persas. Mas em fins do século V a.C., os magoi já tinham adquirido a reputação de praticar feitiçaria maléfica e até fraudulenta: Platão via-os como uma ameaça à sociedade. Os magoi eram indivíduos que se diziam possuidores de conhecimentos técnicos e poderes para ajudar seus clientes e prejudicar seus inimigos, mediante a realização de certos ritos ou o fornecimento de determinadas fórmulas. Inferiores aos magoi eram os goētes, praticantes de uma variedade rudimentar e despretensiosa de magia. “Gritadores” de palavras mágicas, misturadores de poções e tecedores de feitiços, os praticantes de goēteia tinham uma larga reputação de charlatanismo.
As autoridades romanas eram geralmente intolerantes em relação a todas as variedades de feitiçaria. A prática de feitiçaria, em oposição aos ritos públicos aprovados, ligados à religião oficial, era considerada uma ameaça à sociedade.
Os imperadores, sempre apavorados com a possibilidade de conspirações e atentados contra suas vidas, temiam a feitiçaria como a menos identificável e, portanto, a mais perigosa de todas as ameaças. A repressão era indiscriminadamente implacável. Um jovem surpreendido nos banhos públicos tocando primeiro os ladrilhos de mármore e depois o peito enquanto repetia as sete vogais gregas – um ritual prescrito contra distúrbios gástricos – foi detido, torturado e executado. A tradição inexorável do direito romano foi um dos alicerces em que assentou a perseguição medieval da bruxaria.
A imagem da feiticeira na literatura clássica é quase uniformemente tenebrosa: Circe, a sedutora; Medeia, a assassina; Dipsias, de Ovídio, Oenoteia, de Apuleio e especialmente Canídia e Sagana, de Horácio, aquelas que com seus rostos lívidos e hediondos, descalças, cabelos desgrenhados e roupas andrajosas, reuniam-se de noite num lugar ermo para escavar o solo com seus dedos em forma de garras, esquartejar um cordeiro negro, comer-lhe a carne e invocar os deuses infernais. Essa tradição literária da feiticeira perversa serviu facilmente de base para a ulterior imagem cristã da bruxa.
O pensamento greco-romano também iniciou a estreita vinculação da feitiçaria com a demonologia, que se tornou a característica dominante da bruxaria europeia. Acreditavam os gregos que todas as variedades de feiticeira faziam seus trabalhos depois de consultarem daimones. O grego daimōn, do qual deriva a nossa palavra “demônio”, foi usado por Homero quase como sinônimo de theos, “deus”. Depois de Homero, a palavra passou a significar um ser espiritual inferior a um deus. No tempo de Sócrates, um daimōn podia ser bom ou mau, e o próprio Sócrates declarava ter um daimōn que lhe segredava bons conselhos ao ouvido. Mas quando Xenócrates, o discípulo de Platão, dividiu o mundo espiritual entre deuses e demônios, transferiu as qualidades sombrias dos deuses para os demônios, que daí em diante foram considerados entidades malignas. Portanto, a consulta a demônios praticada pelas feiticeiras ficou estreitamente ligada aos poderes das trevas.

Outros elementos da religião greco-romana contribuíram também para a formação da imagem da bruxa. As lâmias, espíritos que, como Lilitu, erravam pelo mundo seduzindo homens e matando crianças, e as harpias, mulheres aladas que percorriam o mundo impelidas pelo vento e perpetravam as maiores torpezas, emprestaram suas características à bruxa humana. Os festivais de Dionísio tornaram-se o modelo para os ritos supostamente praticados pelas bruxas medievais. Os ritos dionisíacos tinham lugar à noite, frequentemente numa caverna ou gruta, locais relacionados com a fertilidade e com os poderes do mundo inferior. Seus participantes eram usualmente mulheres lideradas por um sacerdote. A procissão empunhava archotes e uma imagem fálica, e conduzia um bode negro ou sua imagem. O bode, símbolo da fertilidade, representava Dionísio, que era geralmente retratado com pelos e chifres. O rito concluía com libações de vinho, danças extáticas e sacrifício de animais.
O sacrifício humano, muito explorado na literatura, talvez não tenha realmente chegado aos tempos históricos. As acusações de orgia contra as dionisíacas também são exageradas, mas parece que no período helênico as práticas orgíacas se propagaram e os ritos de Cibele e da Magna Mater foram caracterizados por danças extáticas e frenesi sexual. A versão romana dos ritos de Dionísio, as Bacchanalia, tornara-se tão notória por sua licenciosidade que suas celebrações foram ordenadas ilegais pelo Senado em 186 a.C. A descrição das Bacanais pelo historiador Tito Lívio tornou-se parte importante da tradição literária da bruxaria europeia: dizia-se que homens e mulheres reuniam-se de noite e celebravam ritos à luz de archotes, incluindo banquetes orgíacos, libações desenfreadas e sexo. É difícil dizer até que ponto tudo isso é verdadeiro. Acusações análogas eram feitas contra qualquer grupo percebido como uma sociedade secreta. Não só grupos religiosos, como os dionisíacos, mas também grupos políticos clandestinos, como o de Catilina e seus conspiradores, foram frequentemente acusados de orgia e canibalismo.
A feitiçaria hebraica, predominantemente derivada da dos cananeus e babilônicos, exercia grande influência, embora indireta, sobre a bruxaria europeia. Quando a Bíblia hebraica foi traduzida para o grego, para o latim e para as línguas modernas, o significado das palavras hebraicas sofreu transformações. Por vezes, as traduções promoveram perseguições. O caso mais importante neste sentido está em Êxodo (22, 18), que no original hebraico ordena que seja dada morte a um kashaph. O kashaph era um mago, adivinho ou feiticeiro, mas em nada se assemelhava a um diabolista. Na Vulgata latina, o hebraico foi traduzido, porém, como Maleficos non patieris vivere: “Não permitirás que os maléficos vivam”. Na época em que foi feita a tradução da Vulgata, o próprio termo maleficus ainda era vago: podia significar qualquer espécie de criminoso, embora fosse aplicado com frequência aos feiticeiros malévolos. Quando se intensificou a caça às bruxas na Europa, malefica passou a ser o termo específico para denotar uma bruxa diabólica, e o texto foi usado como prova e justificação para a execução de bruxas. E não foi esse o fim da transformação. Os tradutores da Bíblia do rei Jaime I (1611) usaram a palavra inglesa wizzard, com a conotação de um mágico ou feiticeiro, para traduzir a maioria das referências a feiticeiros hebreus. Mas Jaime I, que autorizou a nova tradução, tinha manifestado sua violenta abominação pelas bruxas em seu livro Demonolatry. Para o rei, a bruxa era membro de um culto diabólico e fizera um pacto com Satã. Queria ele que as bruxas fossem exterminadas, e os tradutores régios traduziram deliberadamente kashaph como “bruxa” a fim de fornecer claras sanções bíblicas para a execução das acusadas de bruxaria. A “bruxa” de Endor, a quem o rei Salomão consultava, era originalmente uma ba’alath ob, “senhora do talismã”; em latim, era uma mulierem habentem pythonem, “mulher possuidora de espírito oracular”; mas, na versão do rei Jaime, ela também aparece como uma sinistra “bruxa”. Assim, a feitiçaria hebraica foi transformada para se ajustar aos preconceitos da demonologia cristã.

A feitiçaria hebraica estava muito longe do satanismo, mas a religião hebraica foi influente na criação do conceito de Diabo. A maior parte das religiões do mundo era e é monista, postulando um princípio divino que é bom e mau. Os deuses eram manifestações desse princípio uno, de modo que também eles eram moralmente ambivalentes. Talvez a melhor ilustração dessa ambivalência seja a figura do deus mexicano Quetzalcóatl, que é vida e morte, amor e destruição. A primeira grande ruptura no monismo ocorreu por volta de 600 a.C., com os ensinamentos de Zaratustra no Irã. Sua revelação de que o mal não é, de maneira alguma, uma manifestação do divino, e de que, pelo contrário, procede de uma fonte totalmente diferente, está na raiz do dualismo religioso que postula a existência de dois princípios: um de bondade e luz, outro de maldade e trevas. O masdeísmo, a religião derivada do pensamento de Zaratustra, teve enorme influência sobre o pensamento grego e hebraico, e por meio deles sobre o cristianismo.

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