O nó invisível.

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- Não suporto mais a lentidão dessa mula! – Diz o senhor calvo. – Dessa forma não chegaremos para o banquete!

- Não tem com o que se preocupar, meu caro. Não haverá banquete antes de nossa chegada. – Disse o senhor gordo, coçando a espeça barba.

- Pela luz divina, como pode não se enfurecer com tamanho desdém? Uma mula? Nem ao menos duas! – Insiste o calvo de bigode grosso e negro.

- Sabes que não podemos chamar a atenção! – Repreende o senhor gordo de barba e cabelos grisalhos. – Além do mais, assim temos a chance de contemplar a bela paisagem que nosso senhor fez com tanto cuidado. – Ele ajeita seu manto esfarrapado enquanto se inclina para traz, escorando-se em um baú.

- Jamais fui tão humilhado em minha vida. – O senhor de bigode balança o corpo sobre o baú que está sentado, fazendo toda carroça ranger. – Veja isto! Está caindo aos pedaços! E com esses baús chamaremos a atenção de todos assaltantes dessa estrada!

- Raios Crowder! O orgulho é a ruína do homem... – Diz o grisalho em tom levemente alterado. – Tenha calma homem, chegaremos la quando chegarmos lá, e nem um segundo antes. Confie na luz meu amigo.

- Sejamos francos Torvald, somos dois velhos gordos! Este pobre animal mal consegue levar um de nós no lombo. Quanto mais os dois na carroça. O pobrezinho está a um passo da morte.

- Não subestime as mulas de Andoria, são lentas, mas tão fortes quanto os próprios anões. – Disse Torvald dando uma batidinha no traseiro do animal.

- Assim veremos meu amigo. Ainda tens cerveja em seu cantil?

- Já tomaste todo o teu?

- Há muitas horas. Somente assim para não surtar... Todas aquelas runas... Temo nunca compreende-las por completo. – Disse Crowder alisando o grosso bigode.

- Não se apresse, é uma língua morta há séculos. Deixe que os anões cuidem das anotações. – Torvald entrega seu cantil a Crowder. – Mas não posso mentir. O que quer que aquilo seja, me arrepia a espinha.

- Não confio nos anões. – Crowder toma uma golada generosa do cantil. – Seu reino é frágil e repleto de víboras.

- Mas a fé deles é forte como rocha. Não cabe a nós julga-los. Apenas devemos agradecer por estes tempos de paz entre nossos reinos e lutar para mantê-la. – Diz Torvald.

- Essa paz está condenada... O clero negro se fortalece a cada dia. É questão de tempo até saírem das sombras. Os sinais são claros, mesmo dentro da capital, onde a luz é mais forte! Tenho que admitir, aquela oráculo pagã me parece cada vez mais lúcida... – Diz Crowder esfregando os olhos com suas mãos cabeludas de dedos curtos e grossos.

- E é por este motivo que não deixaremos que toquem... seja lá o que aquilo for. – Diz Torvald ao tocar amigavelmente o ombro do amigo. – Não se preocupe meu velho, estaremos mais que preparados quando vierem, temos a luz do nosso lado. E é tudo o que precisamos!

- Não seja tolo! Você sabe o que eles querem fazer tanto quanto eu! Se conseguirem, nenhum anjo poderá nos salvar!

- Tenha fé Crowder. Apenas tenha fé... – Torvald sorri e da dois tapinhas no ombro de Crowder.

Crowder respira fundo e toma mais um gole de seu cantil:

- Há uma hora dessas Gannar e os outros já devem ter chegado a capital. – Diz Crowder. – Com alazões como aqueles...

- Muito provável. Mas não estamos tão longe, não mais que um dia de viagem. – Torvald Sorri.

- Sinto falta da Ammy... – Suspira o bigodudo calvo.

- Uma garota abençoada como jamais tinha visto, de sorriso apertado e olhos brilhantes... Como alguém tão jovem pode ter tanta luz? – Diz Torvald.

- Sim. Ela é abençoada, mas ainda uma criança. E crianças devem ser crianças o máximo que puderem... E isso foi tirado dela. – Crowder suspira enquanto encara o cantil vazio.

- É por uma boa causa. Ela se tornará uma grande sacerdotisa um dia. Talvez a mais iluminada de sua geração! Porém, para alcançar tais feitos, ela deve sacrificar seu tempo em prol da luz. É a lei da vida... é como deve ser. – Torvald descansa sua mão em seu colo, e a observa aberta como se lesse um livro. – Não esta em nosso alcance, não cabe a nós sequer uma vírgula...

- O Sumo Sacerdote é muito rígido com ela. Vejo o medo nos olhos da garota sempre que ele está por perto. – Diz Crowder baixinho. – Isso fere meu coração.

- Bobagem Crowder. Ammy o ama! Ele é um pai dedicado. Rígido, sim. Mas que pai não teme que seu sangue se deixe corromper as tentações das sombras?

- De fato. Mas as vezes parece que Harold se esquece que Ammy é apenas uma garotinha, e não um de seus cavaleiros negros. – Crowder franze o cenho.

- Cuidai do que vossos olhos veem, Crowder. Pois, se vê mais trevas do que luz, podem sujos estarem. – Cita Torvald. - Não se esqueça que se trata do Sumo Sacerdote, um homem iluminado e temente a Taurios! Não cabe a nós questioná-lo...

- Tens razão... Essa viagem está me fazendo perder a cabeça. – Crowder dá de ombros e devolve o cantil. Então junta suas mãos como uma concha e se põe a orar.



"O sonho que perdi ao me distanciar do pequeno eu, não foi perdido, apenas não sou mais quem o merece. "

Trecho de "O velho dos olhos turvos" por Cesar Malho-Luzete.

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