𝐂𝐚𝐩í𝐭𝐮𝐥𝐨 𝐈

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Semanas depois que terminou o último livro, A senhora do Lago, Coline imergia em suas horas diárias de videogame. Desde que se mudou para a casa do pai, que havia se casado pela segunda vez e arranjando outras duas filhas menores, seu tempo com qualquer coisa que a tirasse da realidade era precioso. Gostava de se perder entre os mundos e participar das aventuras junto dos protagonistas. O personagem da vez era Geralt, de Rívia, o bruxo caçador de monstros e sua nova paixão.

A voz de seu pai ecoa do lado de fora, apressada, e Coline não se importa em desligar o videogame e abrir a porta porque ele entrou por conta própria, um sorriso amarelo esticado no rosto bronzeado.


— Estamos saindo, tem certeza que vai ficar bem? — ele se senta na ponta da cama e encara a tela, torcendo o nariz para a cena de luta contra um pequeno grupo de lobisomens.

— As gêmeas vão ficar na casa da tia, o gato não incomoda e eu tenho comida congelada para um batalhão.

Sua atenção não se desvia da tela, cada investida, cada esquiva eram importantes para permanecer invicta. O pai parece tão interessado na batalha quanto ela, se inclina para frente em expectativa quando um movimento em particular quase acaba com o combo perfeito de ataques. Quando o último lobisomem morre, pai e filha vibram e batem os punhos em comemoração, então ela larga o controle e o encara, suspirando.

— Tem certeza que não quer vir? — Coline balança a cabeça.

— Vou cobrir o turno do Lucas na loja mais tarde. Vão se divertir.

Era outra viagem. Sua nova esposa não era uma mãe negligente, mas era quase palpável a negligência que tinha com suas gêmeas, talvez ter uma enteada maior de idade lhe trouxesse um pouco de calma. Não tinha nenhuma obrigação com Coline, e esta tampouco incomodava por causa de desigualdade na hora de servir as porções de fritas do drive-through.

— Te ligo quando chegar lá? — a pergunta era retórica, e seu pai já estava quase fechando a porta, mas parou no vão e sorriu para Coline, que assentiu. — Até semana que vem, botão.

O apelido a pegou desprevenida. Não era usado desde que tinha seis anos, um ano antes das brigas começarem, do divórcio e de sua mãe simplesmente desaparecer do dia para a noite, deixando-a sozinha por dias antes que seu pai finalmente a encontrasse no canto do sótão, sozinha e chorando. Um arrepio se alastrou em sua nuca, que foi afastado pela música baixa vinda do jogo ainda na tela.

Um sorriso irrompe pelo desconforto quando ela observa a movimentação do peito do bruxo na tela. Nunca admitiria em voz alta, mas seu consolo era saber que poderia jogar e rejogar centenas e vezes, saber que os personagens estariam sempre ali quando precisasse de alento. E a ciência disso a tornava extremamente patética.

— Collie? — outra interrupção quebra o transe entre Coline e os olhos amarelos do bruxo. As gêmeas nunca entravam em seu quarto sem permissão, esperavam pacientemente até que a irmã desse permissão ou abrisse a porta.

Com um suspiro derrotado, ela pôs fim na pequena alegria de sua tarde e deixou o controle sobre o sulco da parede que servia de prateleira para seus jogos e consoles. Quando girou a maçaneta, um par de rostos corados sorriu do outro lado da porta. Manchas de calda de morango seca se espalhavam em suas bochechas.

— Tá na hora?

As duas assentem e viram de costas rapidamente, mostrando as mochilas de acampamento abarrotadas. Iriam aprontar todas ficando uma semana com os primos. Antes de pegar sua própria mochila, ela puxa ambas até o banheiro e lava seus rostos com a toalha úmida. No carro, elas ficam quietas, sabem que Coline não gosta de bagunça e obedecem, cantarolam junto das músicas e se divertem, cochichando entre si.

O caminho todo, os pensamentos de Coline giram em torno do apelido esquecido de infância, do brilho preocupado nos olhos do pai, da ausência de sua madrasta. Sabia que ela era jovem demais para ter filhas, devia ser alívio ter uma figura paterna para dividir a criação das filhas mas, em vez disso, ela vivia fora de casa.

— Vou ligar pra vocês todos os dias antes de dormir. — Coline gritou quando elas saíram correndo do carro, sendo ignorada completamente e recebendo apenas um aceno despreocupado de ambas. Um riso fraco escapa. Ela já foi como elas naquela idade.

A loja era mais perto da casa da tia das meninas do que da de sua madrasta, então não levou mais que dez minutos para chegar a avenida onde a lojinha se escondia entre os prédios maiores. No sinal vermelho, a coisa mais estranha aconteceu. Os pelos em seus braços foram se arrepiando gradativamente até atingir aquele ponto na nuca que a fazia se encolher e, mesmo a luz do dia, ela sentiu pânico.

Como se carregada pelo vento, uma voz flutuou, sussurrada e melancólica, chamando seu nome. Parecia estar vindo de todos os lados, mas não havia ninguém em lugar algum.

— Coline... Abra os olhos, Coline. Estou bem aqui...

A buzina do carro atrás do seu foi o que a puxou de volta do transe para a vida real. Esticando a mão fora da janela, ela se desculpou e acelerou na direção da outra esquina. A voz retumbava dentro de sua cabeça, fazendo seus olhos marejarem. Ela conhecia a voz, sentia que conhecia.

Era a voz de sua mãe.

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⏰ Last updated: Oct 09, 2020 ⏰

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