Capítulo 03

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“A noite — enorme

tudo dorme

menos teu nome”

- Paulo Leminski

- Paulo Leminski

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HELÔ

Desta vez, quando chego no apartamento não há ninguém para me receber.

Falta bem pouco para as 08:00h e suponho que Leo já deva ter saído. Que bom, seria um pouco estranho ficar aqui sozinha com ele.

Enquanto destranco a porta com a cópia da chave que ganhei, noto a presença de uma pequena câmera acima da minha cabeça. Eu devia me sentir ofendida com isso? Não, é apenas uma precaução. Afinal, eles não me conhecem. Eu faria o mesmo... Na verdade, não. Não faria. Até porque uma câmera destas deve custar o olho da cara. E para que câmeras quando se tem a dona Eleonora, que vigia o bairro todo?

Entro, deparando-me com a sala vazia. Decido dar uma olhada para conhecer melhor o ambiente.

Tudo é tão bonito e sofisticado... As paredes são cor creme, a principal é de tijolinhos, onde um quadro emoldura um belo leão, que chego mais perto para analisar: é muito realista. As bordas estão um pouco sujas, entretanto está muito bem conservado.

A televisão é enorme e há uma camada de pó sobre ela, assim como no painel de madeira escura em que está. Sobre o rack feito do mesmo material, existem alguns objetos desordenados: uma agenda de couro preto, duas canetas, uma calculadora e um bloco de notas. Mais a frente há um vaso decorativo de formato engraçado, que deve ser caríssimo, de cristal, acho. Por último, um porta retrato. Esse eu tenho que pegar. Olho de perto: um garoto cabeludo de boné sorri alegremente, exibindo um skate. Meu Deus... é o Leo! Ele devia ter uns dez anos... talvez treze? Não sei. Mas parecia feliz. Ao lado dele está Bárbara na juventude, com os cabelos longos e olhos um pouco fundos. Eles estavam em um parque. E alguém bateu essa foto, obviamente. Será que foi o pai do Leo? E porque não tem fotos dele aqui também?

Os olhos dele mudaram tanto... Como o azul tão vivaz e brilhante que vejo na foto deu lugar àquele azul nublado com presságios de tempestade?

Ai! Toma jeito, Heloísa. Você tem trabalho a fazer...

🌻

Os materiais de limpeza estavam exatamente onde Bárbara informou que estariam.

Limpei cada cantinho dessa sala de estar, cada milímetro. E o resultado é simplesmente incrível! Já é impressionante como uma simples organização muda todo um ambiente, essa minha faxina então... Dá para sentir o cheirinho da limpeza. Os outros cômodos também estão impecáveis. Eu passaria minha língua no chão tranquilamente... Ok, aí também é exagero. Mas o apartamento está um brilho, muito diferente de quando cheguei. Sorte que não é tão grande assim, se não eu teria que terminar amanhã.

Minhas costas doem um pouco. Ainda assim, isso não impede minha felicidade de prevalecer. Primeiro dia de trabalho realizado com sucesso, baby! E nem quebrei nada, o que foi um verdadeiro milagre porque aquelas taças de cristal parecem uma folha de tão frágeis. E os pratos de porcelana, então? Deus me defenda!

A cozinha é meu lugar preferido até agora. Tem uma janela enorme que possibilita contemplar uma boa parte de São Paulo. E o que não falta aqui é comida, citando a Bárbara. Amei essas paredes de tijolinhos, dão um charme todo especial.

Recebi o pedido de não entrar no quarto do caladão. Estranhei, claro, porém achei melhor não questionar — algo que é inevitável para mim...

Ouço um barulho vindo da porta da frente e dou um pulo com o susto. Olho para trás e vejo que Leo e Bárbara estão entrando.

— Dio! — ela exclama, olhando em volta do lugar —, mas isso aqui está um brinco!

Leo entra logo atrás dela. Nenhum dos dois ainda me viu na cozinha. Ótimo, assim vão ser sinceros e vou conseguir ouvir.

— O que achou, figlio?

Eita, que chique o jeito que ela fala. Isso é italiano, se não estou errada. Quantas línguas esse povo deve falar? Ah, não importa. Porque agora é o Leo quem analisa meu serviço. Se já estou feliz com os comentários da Bárbara, imagina com os dele... Sinto um friozinho na barriga.

O rapaz passa um dedo sobre a mesa de centro e verifica se está limpo. Sua resposta se resume apenas em balançar a cabeça positivamente. Será que não limpei direito?

— Oi — cumprimento, fazendo com que notem minha presença.

Bárbara sorri.

— Heloísa, buonasera! Que trabalho profissional você fez.

Gente, quem é buonasera?

Leo sai da cozinha e some no corredor.

Bárbara acompanha os passos do filho, como quem deseja ir atrás dele. Mas ela apenas me olha, um pouco sem graça.

— Ah, antes que eu me esqueça... A partir de amanhã você serve as refeições e o medicamento, certo?

— Certo.

— Você almoçou?

— Sim. Eu trouxe uma marmitinha.

— Eu disse que você pode comer aqui. Amanhã quando servir o Leo, se sirva também.

— Tudo bem, então.

— Você está dispensada por hoje. Parabéns pelo trabalho, ficou divino.

— Obrigada. — Olho na direção do corredor. — Ele tá bem?

— Vai ficar.

🌻

Penso nele enquanto vou para casa. Penso naqueles olhos que tanto me intrigaram.

Ele parece ser triste, como a noite que começa a cair. Embora prefira as manhãs, sempre tive um apreço pelas noites. São bonitas, frias e me lembram a solidão por algum motivo. Assim como o meu novo patrão. No entanto, as noites dão lugar para os dias. A lua troca de turno com o sol. A escuridão se transforma em luz enquanto dormimos.

Espero que o mesmo aconteça com o Leo.

Espero que o mesmo aconteça com o Leo

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Dio = Deus.

Buonasera = Boa tarde.

Deslumbrante AuroraWhere stories live. Discover now