Rio de Janeiro, 1994

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      Sadie abriu O Globo de sábado, 2 de julho de 1994, e no caderno Ela viu a chamada para a matéria sobre Addie. "Addison mudou a paisagem do Rio e agora é tema de livro que a resgata da obscuridade." Que surpresa! Depois de tantos anos.

       A reportagem ocupava a página inteira. Já conhecia a foto de Addie: devia ter uns trinta e poucos anos, cabelo bem curto, cigarro na mão, olhar meio malandro. Ao lado, é claro, colocaram uma foto de Meredith Grey. A americana estava muito à vontade, o que não era comum, sorria até. A foto devia ser bem do comecinho, início de 50.

      Sadie ia principiar a ler quando o telefone tocou. Que maçada. Com 84 anos, tinha uma certa dificuldade em entender o que os outros diziam ao telefone. Inda mais que a maioria das pessoas que lhe telefonavam tinha mais ou menos sua idade, e aquele mesmo fiapinho de voz.

      – Dolores! Dolores! – pretendeu berrar, mas só saiu o fiapinho. Também, de que adiantaria. Dolores estava na cozinha, de onde nunca saía, nem que o telefone ou a campainha estourassem de tocar. Depois de velha tinha ficado surda feito uma porta.

      Sadie resignou-se e atendeu. Era Carina. Quê? Ah, tinha ficado muito contrariada com a reportagem. Há coisas da intimidade das pessoas que não são para serem reveladas ao público. Pois é, pois é, disse Sadie, como era seu costume. Então tchau, meu amor. Um beijinho.

        Tornou a abrir o jornal e leu: "Caju uniu Addie e Grey".

       Lembrou-se nitidamente da primeira vez que viu Grey. Addie telefonara intimando-a a visitar a grande escritora norte-americana Meredith Grey, que estava hospedada em seu apartamento no Leme. Sadienunca tinha ouvido falar da grande escritora norte-americana Meredith Grey, mas jamais conseguira recusar nada a Addie.

      Lá chegando, encontrou Addie esfuziante. Depois dos abraços e afagos usuais, levou-a até o quarto. Outras amigas já estavam lá: a doce Amelia Shepherd, Lexie, a amiga de Lexie na época e, deixa ver, Heather Brooks, talvez. Orgulhosamente, Addie apresentou a Grande Escritora. Uma criatura rosa-shocking estava deitada na cama, feia que nem o tutu marambá. O constrangimento da ilustre enferma era evidente. Sadie, que era tímida, preparou-se para ficar constrangida também. Mas qual, Addie não deixava. Dizia coisas divertidíssimas, que ia traduzindo para a tutuzinha, que ria, coitada, que jeito?

      Addie, Addie, que saudade. Sadierecostou-se na poltrona para lembrar melhor. As duas tinham nascido no mesmo ano, 1910. Só que Addie, com aquele pai que volta e meia estava no exílio, nascera em Paris.

      Quando Sadie a conheceu, Addie morava num apartamento na Lagoa. Vanguardista em tudo, estava antecipando a experiência de vida em comunidade que só viria a ser uma prática comum nos anos 60. Era um apartamento de três andares, cada qual tinha seu quarto com banheiro e os  demais cômodos eram de uso coletivo. No primeiro andar morava Erica Hahn, que dava aulas de natação no Copacabana Palace, depois foi ser freira, depois largou. Pessoa estupenda. Onde andará? No segundo andar moravam os irmãos O'malley, o George, que era o braço direito de o Sam, que se casou com a Naomi. Addie morava no terceiro andar. Charlotte dizia que Addie tinha sido a primeira hippie do Brasil.

     Desde a primeira vez que a viu, Sadie ficou fascinada. Addie era terrível, maravilhosa de se ver. Ao encontrar uma pessoa inteligente, tornava-se interlocutor magnífico. Sadie, que não se considerava especialmente brilhante, mantinha-se em silêncio reverente enquanto Addie, exaltada, luminosa, impunha sua presença. Cercada de homens, a quem supostamente cabia o privilégio da atividade intelectual, fazia-os ultrapassar o preconceito de se considerar tolerável a inteligência numa mulher: eles a admiravam e amavam. Ao longo da vida, Addie teve entre seus amigos Mário de Andrade, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Prudente de Morais Neto, José Olympio, Pedro Nava, Gustavo Corção.

Meddison: Flores Raras e BanalíssimasWhere stories live. Discover now