Capítulo 1

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Naquela manhã, a azáfama na vila de Lain era a mesma do dia em que fugira com o meu irmãozinho Ray do orfanato de Santa Eulália, há quinze anos atrás. Todos os dias na vila de Lain eram, na verdade, iguais. O sol brilhava sobre o largo da capela naquele domingo de manhã. Os seus raios espreguiçavam-se sobre os imaculados vestidos de linho branco e os leques trabalhados das beatas da vila que por ali se demoravam nas mesmas conversas do costume. Antes da missa, tinham por hábito gabar-se das filhas que tentavam casar, dos filhos que regressaram da guerra e, claro, pôr em dia coscuvilhices, pecados alheios e julgar os que não viriam receber a bênção do Senhor. As moças da vila, de aventais brancos, a lavar roupa na fonte, já não brincavam a chapinhar ou à apanhada. Agora, jovens formosas, coravam sob o pó de talco que cobria as suas faces rechonchudas e namoriscavam à distância moços de fatos engomados e brilhantes, a estrear para a missa. Uma beata loira e pálida, experimentava numa boutique um vestido de veludo azul denso que a fazia parecer uma freira do convento de Lain. A mãe abraçava-a e beijava-a, abanando-lhe um leque quando um rapaz formoso lhes acenou da montra. No largo da capela todos os devotos coscuvilhavam com uma compostura cortes, maneiras finas e educadas, próprios de gente santa, e por isso, a minha presença ali era imediatamente detetada.

Contudo, permanecia alheada aos olhares condenadores da multidão, distraída, de nariz enterrado num livro de botânica. Esperava que o sino da capela tocasse. Três, dois, um... suspirei, avançando. Dias maus de caça fizeram com que tivesse prestes a fazer a última coisa que queria. Ir à missa.

As badaladas graves ressoaram pela vila, silenciando o ruído da manhã. Mas não por muito tempo.

"Se não é a rapariga estranha! O que faz ela aqui?!, ouvi a peixeira da vila guinchar para uma beata próxima, enquanto tirava a luva de cetim branco e molhava a mãozinha na água benta da pia de pedra. Observava-me de olhar desconfiado. "Sempre de cabeça nas nuvens!"

Entrei na capela entediada.

"Em nome do pai e do filho e do espírito santo", a voz do padre Tomlin no altar ecoou pelas paredes de pedra.

A peixeira benzeu-se e afastou-se. Segui-lhe os passos na direção das fileiras de bancos de madeira cheias de beatas assíduas. Ajoelhou-se e puxou da mala de seda um terçozinho de contas brancas que entrelaçou nas mãos. Não me ajoelhei. Não tinha vindo para rezar. Sentei-me na última fileira e abri o meu livro de botânica, remédios e unguentos. Tentei lembrar-me onde tinha ficado. Pelo menos com ele conseguia curar mais feridos de guerra do que o Padre Tomlin com as suas rezas. Tinha a impressão que nunca alguém tinha melhorado com uma delas.

Uma beata sentara-se ao meu lado. Madame Mercedes, a florista da vila.

"O que fazes aqui?", a sua voz estridente fez-me sobressaltar.

"Vim à missa", disse, sem desviar o olhar do livo.

"Não devias vir aqui! Este é um lugar santo, não para bruxarias e macumbas desses livros que lês. Tudo seria perfeito se fossem todas religiosas como Aile."

Virei a página, ignorando-a.

"O lugar das bruxas é na fogueira da inquisição", fungou madame Mercedes, levando o terço ao peito.

A fogueira... como podia ter-me esquecido? Fechei o livro e ajeitei o meu vestido rasgado, tentando esfregar uma mancha de terra e sangue ainda fresca. As minhas roupas estavam sempre sujas dos animais ensanguentados que caçava todas as manhas na floresta.

Embrulhei o xaile em redor dos ombros, a única forma de disfarçar o vestido manchado, e olhei em frente para o altar. Junto a madame Mercedes sentava-se Aile, que não tirava os olhos do outro lado da capela onde Gaston lhe sorria. Gaston era filho do presidente, um rapaz forte de cabelo louro brilhante, penteado para um dos lados, usava sempre um facto impecavelmente engomado e vincado e sapatos de vela reluzentes. Sentava-se com a sua família que, como todas as outras na vila, todos os domingos vinha ali ser abençoada. Aile parecia ter conseguido que ele a pedisse em casamento. Fazia questão de abanar educadamente o leque trabalhado com a mão que exibia um anel de ouro reluzente. O seu anel de noivado. A sua atenção era apenas desviada para coscuvilhar com uma beata da sua idade, Merl, sentada ao seu lado. A razão pela qual Aile ia à missa era um mistério absoluto para mim, uma vez que duvidava que tivesse ouvido uma palavra do que o padre Tomlin dissera. A não ser claro, que fosse para se exibir perante o resto da vila. O passatempo preferido de Aile era rebaixar alguém. A pessoa que mais gostava de insultar era eu. Chamava-me pobre, herege, dizia que não tinha futuro e que acabaria solteira. Mas geralmente não conseguia incomodar-me, porque, apesar de não o saber, não pretendia casar com um rapaz tolo como Gaston, mesmo tendo-me ele feito essa proposta antes de lha fazer a ela.

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⏰ Última atualização: Dec 04, 2020 ⏰

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