Onde estão os meus olhos - Alguém bate à porta

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" As portas! As portas! Cuidado com as portas!"

" As portas! As portas! Cuidado com as portas!"

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Prólogo: Tem alguém batendo. Eu sei que tem. Não gosto de portas. Não gosto de batidas nas portas a essas horas. Coisa estranha. Coisa muito estranha. 

Ela pegou a chave e a bolsa e saiu para o mercado a fim de comprar algo que certamente esqueceria no caminho. Então, compraria outra coisa sem nenhuma relação com o que deveria comprar. Demorou pouco tempo fora. Quando chegou, trazia duas sacolas com doces e massas. A alça da bolsa escorregando pelo ombro e o coque desfiado se desfazendo. Se apressou a colocar as sacolas cheias na mesa da cozinha. Colocou as chaves na mesinha de centro e procurou organizar sua vida. Tinha as sobrancelhas arqueadas e rugas de expressão desarmonizando o seu rosto.

Naquela terça tempestuosa e cinza enquanto lavava a louça suja, seu celular tocou. Um trim-trim de telefone antigo foi ouvido. Secou as mãos no pano de prato e procurou o aparelho. Quando o encontrou, o nome de sua mãe brilhava na tela. Ela estacou. Sabia que deveria atender. Se não atendesse, sua mãe ligaria novamente e quantas vezes mais fossem necessárias. Sua mãe era dona de uma persistência invejável. Venceria qualquer adversário só pelo cansaço e ela sabia disso. O toque se torna irritante. A torneira da pia goteja. Mas, ela não quer ouvir a voz histérica da mãe lhe dando ordens, lhe pedindo favores. O celular continua a vibrar, impaciente, decisivo e autoritário. ATENDA, HELENA! Ordena a voz em sua cabeça, muito mais sã do que ela própria. Se ela atendesse, a mãe lhe perguntaria a que horas sairia o avião para Curitiba.Por que saíra às pressas de casa? Qual o motivo daquela viagem?Eram muitas perguntas. Porém, ela não quer responder perguntas. Continua a encarar o celular. Sua indecisão é imensa. Larga o aparelho sobre a mesa e se afasta. Segundos depois, ele pára de tocar.

Ela leva os doces à geladeira, enche o copo com água fresca. Bebe devagar. Na porta da geladeira está presa a foto dela com a mãe anos atrás. Seu apartamento está silencioso. Ela mora na zona sul de São Paulo, na frente do seu condomínio tem uma praça, mas espantosamente nenhum vizinho a usufrui. Seu bairro é quieto e silencioso. Um tanto afastado do centro da cidade. Pelo corredor, as luzes nunca funcionam bem.O corredor é escuro e sujo. As paredes são velhas e amareladas. Ela poderia dizer ao síndico que as taxas altíssimas deveriam resolver essas questões, porém raramente encontra algum morador ou funcionário. É um prédio muito silencioso.

Ela resolve se sentar e comer a torta salgada de abóbora que comprara. Senta-se na cadeira desconfortável e abre o pote transparente. Então, ouve duas batidas surdas, roucas quase profundas. Levanta-se de sobressalto. Os móveis no escuro. Caminha lentamente em direção à porta. Silêncio de mil tumbas. Seu apartamento não deveria ser tão escuro. Embora, os dias estejam escuros desde que chegara a essa nova cidade. Não há razão para toda essa escuridão. Talvez, ela só tenha que se habituar a esse apartamento pequeno e reles. Pouco arejado de aspecto abandonado. Precisa de uma nova pintura e de pelo menos três janelas para ventilar. É ordinário e ela sabe disso. Consegue até ouvir os passos dos vizinhos no teto. Gente arrastando móveis e muitas vezes um choro agoniado. Mas, agora as batidas na porta tomaram sua atenção. Ela é uma moradora recente. Ainda não tem conhecidos nem amigos. Chegou há poucos dias. Quando se aproxima, vê pela fresta da porta a sombra dos passos. Sente um pavor ao ouvir. Pensou em levantar o braço e tocar na maçaneta, mas não tem coragem. Ela não sabia que aquele apartamento simples era tão estranho, talvez por isso estivesse tão barato. Se tivesse mais tempo, teria feito uma pesquisa. Mas, sua viagem acontecera às pressas. Na parte inferior da porta, a tinta já descascava. Novas batidas, Ela estremesse. Sente o corpo tenso, retesado. Os ombros enrijecidos.

Onde estão os meus olhos.Where stories live. Discover now