✝️ 0³ sem memórias

1.1K 172 30
                                    























EMPUNHEI o microfone e alisei minha saia endireitando a postura, meus cachos curtos na altura dos ombros, colocados para trás.
— Você entra em: três, dois... Um. 'Tá no ar!
Olhei diretamente para câmera iniciando o link ao vivo.
— Boa noite a todos. Estamos falando diretamente da rota M50 no condado de Galway, onde os guardas florestais recentemente encontraram vários cadáveres de animais espalhados até o fim de um trecho da estrada. Pouco se sabe sobre como esses cadáveres vieram parar por aqui. Um ponto curioso é que segundo a polícia, não havia uma gota sequer de sangue nos restos desses animais. Há também, boatos de que sejam caçadores protestando, já que a caça fora proibida na região desde o ano passado quando três homens foram encontrados mortos com as gargantas dilaceradas. Vamos agora entrevistar um dos guardas que encontraram a cena macabra. — me viro para o homem ao meu lado direito — Boa noite, guarda Johanson. O que pode nos esclarecer sobre este caso? — estiquei o microfone para o policial bem mais alto. Ele tinha a barba feita e usava o chapéu que fazia parte do uniforme verde escuro.
— Boa noite. Bom, eu e mais um companheiro somos responsáveis pela ronda da área desde o trágico incidente envolvendo os três homens, sabemos que mesmo com a caça proibida os foras da lei ainda estão por aí. Passava das nove da noite quando chegamos ao fim da estrada — ele aponta para onde vários plásticos amarelos estavam espalhados: os cadáveres cobertos. — Logo no fim da curva, nos deparamos com a cena. Mesmo meio a neblina avistamos os cadáveres, já que eram cavalos e ovelhas grandes.
— E sobre o sangue, não há rastros? — perguntei.
— Então, essa é a parte assustadora; não há nada até o limite da floresta ao redor, mas a polícia continua investigando.
— Existe a possibilidade de ter sido outro animal?
— Só se for um sanguessuga gigante. — solta uma gargalhada.
O encarei sem rir.
— Obrigada pela entrevista guarda Johanson. — me volto para câmera — Voltamos para o estúdio.
— Três,dois,um e... Corta!
Soltei um suspiro voltando a relaxar os ombros.
— Acha que eu me saí bem? — o guarda me olha sorrindo.
— Com certeza, senhor. — digo sorrindo sem mostrar os dentes.
— Ótimo, minha esposa ficará orgulhosa! Obrigado, preciso ir. Há muito trabalho a ser feito.
Bateu continência e afastou-se caminhando para onde os carros com sirenes ligadas estavam, e outras emissoras de TV.
Olhei para meu único companheiro da noite com a câmera no ombro. Leo segurava sua câmera e me encarava cansado.
— Eu sei — disse a ele que solta um suspiro.
— Estou um caco.
— Estamos — o corrijo — Mas temos que ficar mais algumas horas, a polícia vai dar mais informações.
— Pois é. Isso tudo é tão estranho. — abaixa o equipamento olhando em volta - Se foi mesmo um caçador que fez isso, como pode ele ter conseguido arrastar quatro cavalos para a pista? Como drenou sangue deles?
— Talvez ele não estivesse sozinho, pode ser um grupo.
— Acredita mesmo que foram caçadores?
— O que mais seria? Em dois anos trabalhando juntos já vimos de tudo um pouco, Leo.
— Tem razão. Mas logo a polícia descobre. A morte dos três caçadores ano passado também foi bem macabra e no fim tinham sido alguns lobos vindo do sul.
— Eles estão fazendo o trabalho deles, precisamos fazer o nosso. Vamos, temos que tentar falar com o detetive.
— Aquele mesmo que te mandou flores depois que fizemos a cobertura do acidente no início do mês?
— Ele mesmo. Acredita que ele é casado? Aquelas flores foram um convite para jantar.
— O cara tem fama de conquistador, a aliança no dedo parece ser apenas um detalhe.
— Não me interessa — fiz careta.
Ele riu.
— Vamos nessa.
Assenti e seguimos até onde o detetive bonitão terminava de dar entrevista.
Logo depois ele nos atendeu, sorrindo sendo atencioso como sempre. Seu ar de flerte não interferiu nada no meu trabalho de jornalista, pelo contrário. Leo e eu sabíamos bem o que ocorria nos bastidores de sua vida pessoal, além de "Don Juan" de quinta categoria, o detetive Barnes era corrupto.
Após ter algumas perguntas respondidas pelo o tal, descobrimos que a polícia apostava ser um grupo de maníacos assassinos de animais. Segundo Barnes, a desgraça ocorrida na estrada M50, era sim um protesto contra a proibição da caça.
Uma história mal resolvida que provavelmente continuaria da mesma forma.
A noite caiu e fizemos mais um link para a penúltima edição do jornal local, com mais informações que deixava toda a trama ainda mais misteriosa e bizarra, com ar de filme de terror dos anos 80.
— O que acha de um jantar bem típico de quinta-feira? — Leo propõe enquanto termina de organizar os equipamentos na parte traseira da Van.
— Drive-thru? — ergui uma sobrancelha.
— Preciso de um café forte. — sorriu.
Leo era o típico cara europeu loiro de olhos azuis. Sua personalidade debochada e olhando para seu um metro e oitenta, cabelos jogados para trás, era impossível acreditar que não passava de um câmera-men sem muita fé no futuro.
— Não sei como consegue beber o café daquela lanchonete, é horrível — falei com uma careta.
— Você é muito nojentinha, Elissa — fecha a porta da Van.
— Leo, eu e a maioria da cidade não entende como aquela espelunca ainda não fechou as portas. Somos provavelmente os únicos a frequentar, só vou lá por você.
— Ah, vai me dizer que não adora a torta de pêssego pelo valor de dois euros?
Mordi o lábio, dividida.
— Então...
Ele solta um breve gargalhada.
— Come a torta como se não houvesse amanhã. — acusou.
— Tudo bem, eu me rendo. Agora vamos embora, esse lugar me dá arrepios.
Como o cavalheiro que era, abriu minha porta. Nosso carro estava no fim da estrada, assim que Leo fez o retorno com a van, pude avistar a ponte partida.
A lua brilhava sobre a antiga construção, neste momento meu coração tropeçou no peito batendo acelerado, como acontece numa taquicardia. Levei a mão ao peito como se pudesse fazer a sensação parar.
— Tudo bem com você? — Leo indagou quando me olhou rapidamente.
— Er... Sim. Foi só uma sensação estranha. — digo.
Seus olhos me observaram novamente por um segundo antes de voltar para rua.
— Tem certeza? Percebi sua tensão desde quando chegamos.
— Não é nada — afirmei — Aquela ponte é de alguma forma assustadora. Mas estou bem.
— Okay — assentiu.
Desviei os olhos da construção.
Durante o caminho, mantive a vista para fora da janela sem desviar atenção da vegetação alta e escura. Aquela área ficava fora dos limites da cidade, as pessoas diziam ser "a colina" ou "ponte partida" um canto solitário de Galway, ninguém atravessava depois do rio, no limite de uma alta colina. Abracei o próprio corpo sentindo um pouco de calafrio.
Nosso veículo era um modelo antigo e não tinha ar condicionado, isto porque nossa emissora era uma das mais famosas, a Antena 1.
Na lanchonete quase abandonada, comi três fatias da torta e meu companheiro um combo de cheeseburger com um copo grande de café. Este foi nosso jantar para depois voltar para redação. O trabalho não havia terminado ainda.

Eternidade: laços de sangueOnde histórias criam vida. Descubra agora