Capítulo único

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Por acaso mostrarás as tuas maravilhas aos mortos, ou os finados se levantarão para te louvar? – Salmo 88:10


Algum lugar no século XIV

As chamas aumentaram gradativamente perto dos pés das mulheres amarradas contra os mastros de madeira. As palhas que há pouco eram verdes com suaves tons acastanhados agora assumiam a tonalidade da morte. A fumaça tóxica e definitiva impregnava não só as narinas das prisioneiras, mas em de todos que ali estavam. O vilarejo inteiro veio acompanhar com os próprios olhos as bruxas serem queimadas vivas.

— Queimem as bruxas! — berrou um dos moradores por entre a multidão.

— Deixem-nas queimar! — acrescentou outra habitante, aos gritos.

Queimar mulheres vivas não fazia parte do protocolo da igreja católica. As mulheres precisavam confessar os pecados e feitiçaria antes de serem enforcadas, para então, queimarem já mortas. No entanto, a caça às bruxas nem tinha começado direito, logo, protocolos eram quebrados o tempo inteiro, principalmente em vilarejos tão minúsculos quanto a sabedoria sobre "assuntos proibidos".

O soturno céu não possuía uma estrela para abrilhantar o ato primitivo e instintivo para as mentes pequenas e apertadas daquela época. A lua, mesmo cheia era ofuscada pelas nuvens, criando um cenário propício para o que acontecia no centro da praça. A brisa gelada e cortante parou o uivo sombrio em respeito aos últimos suspiros das jovens.

Por sete dias só se falava nisso. As más línguas emanavam o veneno por entre a máscara falsa de boa conduta contra as pobres moças, escolhidas a dedo pelo padre local para serem executadas na última noite de lua cheia. Mulheres comuns, sem precedentes de magia negra ou branca. Moradoras como qualquer outra ali, que frequentavam a igreja e ajudavam nas plantações. Humanas com sonhos e pecados como qualquer outro ser.

O padre suava feito um porco no matadouro. O colarinho estava mais apertado do que nunca. As mãos trêmulas e os pés formigando em baixo das sandálias desconcertava a figura séria e rígida que ele precisava manter. Ele não acendeu a fogueira, mas ordenou a execução. E dentro de seu peito, no fundo de seu coração, sabia o pecado que estava cometendo, e acertaria as contas com os dois lados no dia de seu julgamento final. O sacerdote lia a bíblia para manter os olhos culpados longe das mulheres vestidas de branco a sua frente. A performance que fazia nada mais era do que um ato de puro egocentrismo.

Se ele quisesse manter a sua dignidade e respeito por entre aquela gente, precisava condenar alguém.

Há meses corria boatos nas cidades próximas de que as bruxas estavam soltas e vagavam por entre os fiéis da igreja. O mal se vestiu de saia e cobriu os vilarejos com o seu manto negro e perverso, eles diziam. Crianças estavam desaparecendo; homens estavam morrendo e as mulheres, queimadas. Uma das condenadas foi denunciada pela mãe ao pegá-la tocando em seu próprio corpo antes de dormir. A outra, pelo seu marido por ter recusado se deitar com ele semanas antes. A terceira e última, só estava ali porque perdeu o horário da missa no último domingo por arder em febre. Estava adoentada e não podia sair da cama, ordens da curandeira, que não pensou duas vezes na hora de entrar no confessionário e flagelar que a jovem ardia feito as chamas do inferno.

— Pai, rogai por nós. — Choramingou uma delas, sentindo o calor do fogo se aproximar dos seus pés descalços. Ela olhou para o céu no momento em que um raio rasgou o ar.

Quem vai Queimar? (COMPLETO)Where stories live. Discover now