AQUI SOBREVIVE PILAR

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Boa noite, meus queridos!!!!

Estou extremamente feliz pela quantidade de visualizações que o livro teve em apenas uma semana! Por isso, em respeito a quem está chegando e a quem estava comigo desde o começo, vou postar mais uma parte hoje, tendo em vista que eu só posso voltar aqui depois do natal.

Um beijo no coração de cada um e boas festas. 


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Ela estava limpando o freezer onde ficavam os cortes congelados. Ela tirava a sujeira dos lugares difíceis, passava o limpa-vidros na tampa e tirava o excesso de gelo acumulado nas laterais. O Dono de vez em quando a chamava para fazer esse tipo de serviço: limpar as prateleiras, lustrar as janelas, escovar o chão e lavar os tapetes. Ela não tinha emprego fixo e vivia de fazer mandados nos comércios de periferia – os únicos que a aceitavam -, aparar a grama e arrancar as ervas daninhas dos quintais e as vezes fazer papel de cozinheira e babá substituta. Muitas vezes era só por um trocado ou por comida. Mas o que ela gostava mesmo era das crianças.

A moça tomou fôlego. Aquele serviço acabava com as suas costas, como se ela tivesse 60 anos, e não apenas 20. Entretanto, não podia reclamar, já que aquele era o trabalho que mais lhe dava dinheiro, e o dono do mercadinho a deixava comprar fiado e descontar em serviços depois. Além disso, ali nunca lhe negaram um prato de comida: funcionários e patrões compartilhavam da mesma refeição, ao contrário da maioria das casas em que ela já fez faxina.

Ela levantou-se e foi esvaziar o balde cheio de gelo na pia do açougue, para voltar e começar o processo de novo. Alguém gritou lá do pátio: "Pilar! Pilar!", e ela largou o balde e saiu correndo para pegar o jantar coletivo. Ela ficava linda quando corria. Parecia que a criança que ela era por dentro desabrochava naquelas horas, com seus cachinhos muito negros cortados no meio das costas esvoaçando. Na verdade, ela era linda de qualquer jeito, com aqueles inocentes olhos de jabuticaba, a pele negra como uma seda que cheira a lavanda, o rosto redondo, o queixo pequeno, a boca igualmente pequena e carnuda. Tudo nela parecia harmonizar. Pilar era uma mulher única com uma beleza única, porque é assim que as mulheres são.

Ela sentou-se na cabeceira daquela mesa improvisada com madeirite. Era noite e fim de semana, o que significa que a mesa estava mais farta, pois o jantar era feito com os produtos que estavam perto de se vencer para que as coisas fossem repostas na segunda-feira. Tinha pão, queijo, broa, batata, café, cuscuz temperado, sopa de ovos, suco de caixinha, tangerina e um restinho de bolo. Pilar fez um prato grande e foi comendo de forma desajeitada. A moça era conhecida por ser comilona, mas o pessoal do mercadinho não ligava – achavam até divertido – e ficavam até felizes em poder proporcionar aquilo para ela. Todo mundo sabia que ela passava muita fome.

Era de se impressionar a quantidade de comida que uma mulher tão magra era capaz de ingerir de uma vez, mas para quem fez a última refeição à cerca de 13 horas, não era uma missão impossível. Só que ainda que fosse bem magra e com um rosto infantil, Pilar tinha um corpo de mulher já bem feito, com seios medianos e coxas grossas. Outro paradoxo era aquele jeito bobo que ela tinha, algo que extrapolava os limites da inocência e ia para algo mais profundo: para Pilar, a vida não era para ser vivida, e sim sobrevivida. Faltava-lhe perspectiva. Ela não conseguia enxergar quão grande era o mundo porque ele nunca lhe foi apresentado. A vida dela era sempre a mesma: os dias iam virando noites e ela só tinha que garantir o que comer amanhã.

Pilar era a mais nova de nove irmãos, e não se lembra da maioria deles, só sabe que assim como todos ela teve que sair de casa ainda criança. Ficar grávida era um fato quotidiano da sua mãe, e chegar bêbado em casa era o do seu pai. Foram tantos os abortos e bebês mortos de desnutrição que Pilar nem lembra. Com a idade de Pilar ela já tinha quatro crianças. A mãe dela não tinha condições de sustentá-los, e teve muitos filhos porque dizia achar bonito. Com uma família grande ela nunca ficaria sozinha, todavia foi sozinha que ela terminou, visto que não poderia contar com seu marido omisso e violento para nada. A mãe de Pilar também não tinha perspectiva, e levava a vida aguentando. Pilar nem sabe se os pais queriam aqueles filhos mesmo ou se apenas não sabiam como e porque não tê-los.

Agora, aos 20, já faziam quase 10 anos que Pilar não via a família – nem ao menos sabia se estavam vivos ou mortos, e era assim que ela preferia. É certo que nunca deixou de ter graves dificuldades financeiras – nem nunca teve um sapato novo -, mas ao menos não tinha que dividir o dinheiro que conseguia com os irmãos que batiam nela. Pilar tinha raiva da família, pelo que eles eram e pelo que fizeram com a vida dela. Era até difícil imaginar que alguém como ela pudesse sentir raiva.

Pilar ficou tagarelando durante a refeição, fazendo seus colegas rirem até que um deles engasgou. – Rejane, mulher, cale essa boca! Você fala demais! – Disse Pilar, referindo-se à empacotadora, que nunca falava nada desde que pôs aparelho dentário. Rejane, por sua vez, mostrou-lhe o dedo do meio, o maior de todos, e riu. Pilar levantou-se e foi ajudar o pessoal a retirar a mesa. Zezé, o homem do caixa, começou a entoar uma valsinha, no que ela revirou os olhos:

- Zezé, o ser humano tem que sentir muita dor para produzir um som desses, não acha?

- Tu é com inveja, Preta. Vá arranjar um trabalho!

- Eu já estou tirando os pratos da mesa, A mão de sua majestade não vai cair se fizer a mesma coisa! – E Zezé foi embora batendo com os pés.

- Mas você também tem resposta para tudo! – Falou o Dono do mercadinho, Seu Góis.

Ela colocou o pano de prato sobre os ombros. - Eu não sei o Senhor, seu Góis, mas eu tenho boca para me defender. É o uso de minha preferência.

- Só se for com a boca mesmo, porque se for para dar um murro, com essa mão magra você não faz nem massagem.

- Duvide de mim não! – Ela brincou, ciente de que nunca bateu em ninguém antes.

Ele chegou próximo ao ouvido dela. – Mandei as meninas guardarem umas bolachinhas para você. – Ela sorriu e deu um beijo na bochecha dele, a quem ela tinha mais próximo de um pai.

A moça saiu saltitando até o freezer, como uma criança que acabou de ganhar um doce. Com o dinheiro que ia ganhar hoje, completaria o valor da conta de água – e ainda conseguiu garantir um lanche. Ela então voltou ao trabalho, dessa vez com as forças revigoradas. Os dedos foram ficando vermelhos devido ao contato com o frio e aquela água estava molhando o seu vestido de segunda mão, todo desbotado.

Ela parou um momento para ajustar as tiras do vestido, que tinha um forro duplo para compensar a falta do sutiã. Ela nunca usou sutiã, pois quando estava na puberdade não tinha uma mãe para auxiliá-la no processo, e tão pouco dinheiro para comprar um. Além disso, ela não via um porquê para isso, ainda que todas as moças do mercado usassem. Alguns homens olhavam estranho para ela e até soltavam piadinhas, principalmente no ônibus, desde que ela era muito novinha. Naquela época ela não entendia o que estava acontecendo, mas hoje ela entende, e por isso sente medo.

Então ela finalmente terminou o seu trabalho, bem na hora em que o mercado fecha. Já eram mais de 19:30 da noite e ela tinha que ir para casa rápido. Pilar então vestiu o casaco, pegou a bolsa de pano com o apurado do dia e o dinheiro da passagem, a sacola de bolachas e foi embora.

 


MELHOR QUE TODAS ESSAS COISAS [DEGUSTAÇÃO]Onde histórias criam vida. Descubra agora