Prólogo

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Eu tinha sete anos quando fui diagnosticada como portadora de TDAH e Transtorno Bipolar. Duas disfunções neuropsiquiátricas que juntas poderiam causar um apocalipse. Ou quase isto. O TDAH - que é um misto de déficit de atenção com hiperatividade - me tornava uma criança extremamente difícil de lidar e fazia com que a minha presença fosse constante nos hospitais da cidade. Além das feridas mais graves, havia também as superficiais que sempre estavam comigo. Foi graças a esta patologia que recebi um apelido que me persegue até hoje: foguetinho. Bem sugestivo, não é mesmo? Eu era aquele tipo de criança que nunca era vista passando manteiga no pão e brincando com o gato e sim, passando manteiga no gato e brincando com o pão. Tudo o que eu fazia era o oposto do que era permitido. E não era como se eu fosse mimada e criada em um contexto totalmente liberal, muito pelo ao contrário, os meus pais eram extremamente rígidos e tentavam de tudo para me manter andando nos trilhos.

A euforia e ansiedade estavam dentro de mim como uma chama que nunca se apagava, apenas se intensificava. Tudo o que eu fazia era guiado por estes dois sentimentos que me tornava um caos ambulante. Quando eu não estava esperando por algo que eu não sabia o que era, estava correndo ou escalando os móveis de casa. Eu e o meu irmão do meio vivíamos em pé de guerra, pois, assim como eu, ele também sofria com o TDAH, mas não com o Transtorno Bipolar, que só havia se desenvolvido em mim. Era totalmente estranha a forma com a qual nos tratávamos como verdadeiros irmãos em um momento e, no outro, como os piores inimigos.

Pelo fato de ambos sermos como tufões, a minha mãe sempre tentava nos manter o mais longe possível um do outro, para não causarmos estragos irreparáveis. E, sendo assim, sempre que íamos à algum lugar, ele era o primeiro a se juntar aos meninos porque era como eles, e eu tinha que ficar na companhia das meninas. Era horrível. Eu me sentia no purgatório. Nada do que elas faziam ou falavam era interessante para mim. Enquanto elas pensavam em bonecas e maquiagens eu queria fortemente brincar de "polícia e ladrão" com os meninos. Eu ansiava por usar toda a energia que havia em mim de algum modo produtivo, e não ficar vestindo Barbies.

Toda esta agitação fez com que eu me tornasse um menino com uma vagina diante dos olhos das pessoas. Elas não entendiam que as minhas roupas rasgadas e imundas eram mil vezes melhores do que os vestidos impecáveis de suas filhas. Eu era selvagem e gostava disto. Não havia nada mais libertador do que rolar na sujeira e correr entre as árvores. Foi por este motivo que a minha mãe fez com que eu entrasse para o escoteiro quando tinha nove anos. Antes disto, eu já havia participado de aulas de ballet por dois anos e estava usando sapatilhas de ponta quando quebrei a perna numa tentativa de dar três piruetas seguidas e sem apoio.

Meu pesadelo escolar começou pouco tempo depois que eu comecei a fazer tratamento. Eu era uma criança muito magra e quase não comia. Isto é possível quando se tem problemas com ansiedade? Sim, pois eu a dispersava com a ajuda de atividades físicas que faziam com que eu não tivesse o foco em comidas, o local onde pessoas ansiosas costumam ter a sua atenção. Sendo assim, os meus pais procuraram por algum remédio que despertasse o meu apetite e, quando encontraram, fizeram-me tomar durante meses. Inicialmente, não havia nada que comprovasse um resultado positivo, pois eu ainda mantinha a mesma falta de interesse pela comida. Mas depois de algum tempo, o efeito foi colossal. A cada dia que passava eu ia adquirindo mais peso e, de repente, parecia que toda a minha ansiedade havia se focado nas mais variadas guloseimas.

Eu estava na terceira série quando comecei a ser bombardeada por palavras afiadas que me incitava à agressividade. Tudo aquilo era insuportável para uma mente tão pequena como a minha era. Foi então que eu comecei a criar uma barreira interna que me isolava de todas as outras pessoas. Eu, que era uma criança agitada e feliz, comecei a me tornar solitária e vazia. Todos os dias eu atravessava o inferno para suportar todas as pessoas ao meu redor. Era uma tortura constante. Eu não possuía amigos e nem colegas, apenas a família, que era o meu alicerce e o motivo pelo qual eu aguentava tudo aquilo sem arrancar a minha própria cabeça.

Como se isto não fosse o suficiente para uma criança de quase dez anos, os meus pais deram inicio a uma crise no casamento, a qual acabou resultando em brigas diárias por motivos que eu sequer entendia, mas que hoje posso compreendê-los muito bem. Quando faltavam poucos meses para o meu aniversário, optaram pela separação que acabou dividindo não só eles, mas toda a família. Eu preferia ganhar meias de presente a ter que passar um dia tão importante sem uma das pessoas que eu mais amava: o meu pai. Eu tinha todo este sentimento puro e belo por ele que mal percebi o momento em que isto começou a se voltar contra mim. Todos sabem que os pais são sempre os heróis da história, e para mim não era diferente. Eu o tinha idealizado de uma maneira única. E, independente de todas as suas atitudes horripilantes, eu só conseguia amá-lo cada vez mais. Porque ele era o meu pai. E eu era a sua garotinha.

Toda a imagem perfeita que eu havia construído dele, começou a ser destroçada quando eu me mudei para a sua casa após uma discussão com a minha mãe e o meu padrasto dois anos depois da separação. Foi ali, vivendo a sua rotina e fazendo as suas vontades, que eu percebi que havia dado a ele qualidades que nem sequer existiam. A sua vida se baseava em festas, noitadas, bebidas e mulheres. Ele era um animal desprezível que adorava jogar com as pessoas e usá-las como degrais sociais. O monstro que eu sempre temi encontrar de baixo da minha cama esteve o tempo todo diante dos meus olhos. Eu apenas não conseguia enxergar a sua verdadeira face. E quando eu finalmente o fiz, foi como um baque.

No momento em que eu voltei à casa da minha mãe e do meu padrasto, que era o local de onde eu jamais deveria ter saído, enfrentei o mais duro tormento. Ser o motivo de chacota das pessoas não era nem um pouco doloroso quanto sofrer uma desilusão familiar. Algo dentro de mim se quebrou em tantos pedacinhos que eu pensei jamais ser capaz de juntá-los novamente. O ser humano estava me assustando cada vez mais, fazendo-me criar uma repulsa tão grande e tão... Intensa.

Foram tempos difíceis tanto para mim, que estava totalmente afundada dentro de mim mesma, quanto para os meus pais, que faziam de tudo para me trazer de volta à superfície. Eu tentava me manter estável na maior parte do tempo quando na verdade eu estava em cacos. Os meus remédios foram triplicados e me ajudavam na maioria das vezes, mas em outras, a dor era tão intensa que eu apenas desejava a morte. Nada do que me diziam pareciam surtir efeito. Eu seguia uma rotina monótona como se fosse um robô, pois a minha vontade era de permanecer todo o tempo na cama. Mas, eu consegui sair quase intacta desta situação, pois ainda havia feridas em meu peito que, por mais que se fechassem com o passar dos anos, jamais seriam cicatrizadas.

Hoje, aos meus dezessete anos, eu faço o uso dos melhores e mais fortes remédios da categoria, que fazem com que as minhas oscilações de humor não sejam tão avassaladoras. Mas, no geral, ainda tenho em mim aquela aversão às pessoas que criei quando tinha apenas oito anos de idade e estou habituada à minha vida de lobo solitário. Não desejo nenhuma mudança neste quesito, pois é exatamente esta minha repugnância que me mantém protegida de toda a maldade do mundo. Gosto de ser uma alcateia de um lobo só, o meu próprio entretenimento. É confortante saber que eu posso ser boa o bastante para não ter que procurar em outras pessoas aquilo que deveria servir para me completar, pois eu já me sinto completa.

SELVAGEM INDOMÁVELWhere stories live. Discover now