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Minhas pernas balançavam no ar enquanto eu tentava compreender o livro à minha frente, deitado de bruços na cama de Harry. Eu não me lembro em que momento aconteceu, mas acabei adquirindo a mania de me esgueirar para dentro do quarto dele vez ou outra, depois do jantar, e ficar ali tentando estudar enquanto conversávamos sobre, basicamente, minha vida. Harry gostava de ver meus avanços no italiano e no latim, e às vezes tentávamos conversar nessas outras línguas.

A cama dele era ainda maior que a minha, cheia de travesseiros e almofadas na cabeceira, e colchas de seda geralmente na cor escarlate, verde-escura ou azul-escura. Meu coelho ficava sempre deitado obedientemente ao meu lado, como se tentasse acompanhar meus estudos e leituras. E Harry ficava sentado em uma poltrona perto de uma escrivaninha, também lendo, estudando ou analisando algo relacionado ao trabalho e seus negócios como comerciante. As lamparinas a óleo ofereciam boa luminosidade ao quarto, mas sempre parecia existir uma sombra sobre o rosto dele, e seus olhos brilhavam como esmeraldas na penumbra.

Eu gostava daqueles momentos. Gostava quando ele me elogiava por uma nova palavra que eu conseguia pronunciar sem erro, e me sentia orgulhoso quando era capaz de discutir o enredo de algum livro com ele. Eu não tinha certeza de há quanto tempo eu estava em Veneza, mas suspeitava de que já se haviam passado alguns meses.

As aulas eram verdadeiramente puxadas, como Harry prometera – especialmente as de esgrima. Ao final do dia, eu estava esgotado. Havia tanto para aprender: literatura, filosofia, línguas, música, pintura, matemática, entre outros. Eu sentia que poderia estudar para sempre, e nunca saberia tudo. Harry dizia que era verdade, que ele próprio estava longe de saber tudo (mais para mim, a sabedoria e conhecimento dele pareciam não ter fim).

Eu não saí muito do palazzo naqueles dias, mas já acompanhara Anna ou Emmelice até o mercado da cidade, onde o caos era muito maior do que no porto. Harry não gostava que eu saísse sozinho. Dizia que não era seguro, mas que, a partir do momento em que eu dominasse melhor a arte da esgrima, poderia ir e vir pela cidade quando bem entendesse. O problema é que eu estava longe de dominar a maldita arte. Eu ainda tropeçava em minhas próprias pernas e com frequência deixava o florete cair. Era uma sorte Harry ser tão paciente. Meu pai provavelmente já teria arrancado a minha pele fora por ser tão estabanado.

Passei a língua na ponta do dedo e virei distraidamente a página, não conseguindo me concentrar tanto quanto gostaria na leitura. Chamava-se Decameron, de Boccaccio, e era uma leitura pesada e cansativa, em que eram mostradas inúmeras histórias, recheadas de filosofias e significados ocultos. Empurrei o livro e olhei para Harry, que estava um pouco inclinado sobre a escrivaninha de mogno, escrevendo com um ar concentrado, vez ou outra molhando a ponta da pena no tinteiro e voltando a deslizá-la com rapidez e suavidade sobre o pergaminho.

"Harry, o que é um bordel?" Perguntei abruptamente, de súbito lembrando-me da conversa com a mulher no cais. Quase havia me esquecido dela. Gostaria de ir visitá-la, mas com todas aquelas aulas, que mal me davam tempo para respirar, e com a proibição de Harry que eu saísse sozinho, ficava difícil.

Harry virou-se para mim com as sobrancelhas arqueadas.

"O que há com essa pergunta agora?" Ele perguntou, e seu tom não me pareceu muito feliz.

"A Srta. Parkinson. Ela disse que é dona de um bordel. Eu perguntei para minha professora de italiano o que isso significava, mas ela não me respondeu." Torci o nariz. "E a Srta. Parkinson também falou algo sobre não... não... prost... prostit..." Estava tentando lembrar-me da palavra. Também não conhecia seu significado.

Era uma vez em veneza Where stories live. Discover now