Capítulo IV

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 Eu não poderia passar pela porta de entrada, então era pela janela mesmo que eu passava quase sempre.

 Subo no peitoril e seguro em um espaço entre um tijolo e outro. Coloco um pé e depois o outro, em um espaçamento entre as alvenarias. Assim, vou descendo até meus pés se chocarem ao chão e eu limpar minhas mãos.

 Abraço a garota que me espera e nós rimos silenciosamente e corremos para o curral, um pouco mais distante dali.

 Cada uma sentou numa pedra e sorrimos baixo de novo.

—Hoje foi um dia estranho. – Falo, Benedita confirma com a cabeça. – Até porque, fazia anos que não os via, certo?

—Decerto. – Ela olha para o chão, cansada.

—O que te passas, Bene? – Indago.

—Não, nada. – Ela se conserta. – A Sinhá não precisa se preocupar.

—Benedita, somos amigas. – Eu seguro a mão dela e sorrio.

Os olhos da garota do cabelo crespo se encheram de lágrimas. Ela desenhava alguma coisa no chão com uma vareta.

—Preciso voltar para a senzala. – Ela se levanta.

—Você deveria partir. Aproveitar que meus avós não te acorrenta, como nas outras fazendas. – Sugeri sem pensar.

—E deixar vossa mercê sozinha? – Ela ri. – Não posso, não tenho pra onde ir.

—Um dia, iremos juntas. – Eu sorri, ela sorriu, mas triste.

 Abraçamo-nos e eu a vi ir para um cômodo velho e frio que havia, abaixo da casa principal. Eu gostaria que ela dormisse dentro da minha casa, sob o mesmo teto que eu e meus avós. Ela é praticamente da família e ainda dorme naquele lugar mofado. Quanta injustiça.

 Volto cautelosamente para o meu quarto, deito na cama macia. Penso na dureza que é a cama de Benedita e quis gritar de ódio. Ódio de mim, por não fazer quase nada. Ódio dos senhores. Ódio de quem é a favor desse sistema.

 Foi com essa mágoa e rancor, que adormeci.

🔆

 Meus olhos fecham bruscamente quando viro para o outro lado e a luz do sol irrompe minha vista, coloco o travesseiro na frente do rosto e amaldiçoo a claridade. Aos poucos meus olhos se acostumam com a luz e eu percebo que levando em conta a posição do sol e os raios solares, já está tarde.

 Levanto num pulo e corro para o banheiro para lavar o rosto. Ainda de camisola, atravesso o corredor e quando chego à porta, uma voz fina e animada toma conta dos meus ouvidos.

—Prima! Acordou tarde. – Laura me fez dar um pulo de susto. – Troque de roupa, já programei nosso dia. Vamos passear.

 Aquilo só poderia ser algum tipo de piada. Quem ela acha que é para programar o meu dia? Respiro fundo e a olho com um pouquinho de sorriso no rosto.

—Lamento Laura, mas... – Tento falar, no entanto Madalena surge de algum cômodo e se põe entre nós.

—Mas nada, Celine. – Ela enxuga as mãos no avental. – Saia com Laura, eu e o restante damos um jeito de realizar os afazeres. Além do mais, combinamos de que eles farão todas as refeições aqui, conosco.

 Dessa vez não consegui esconder minha cara de indignação e a olho perplexa. Como ela daria um jeito de dar comida aos cavalos, limpar a casa toda e fazer a comida? Sem contar com as coisas que a Benedita já se sobrecarrega. E como é essa história de todas as refeições com a família reunida? Nem mesmo a Bene teve esse privilégio durante a vida toda.

—Celine, vá se trocar. – Ela ergue a mão quando eu abro a boca, a fim de me calar.

 Eu cerro o maxilar e entro no meu quarto com um pouco de raiva, mas tinha que fingir estar tudo bem. Tudo o que eu menos quero é virar o alvo de críticas da família.

 Visto minha roupa – um vestido marrom com detalhes brancos – o mais vagaroso que consigo e ajeito o cabelo – o deixo solto. Abro a porta e ando rapidamente até a cozinha.

—Bom dia, Celine. – Uma voz grave, mas falhada me chama.

—Bom dia, Nicholas. – Falo colocando o café na xícara.

 Ele me olha com o sorriso cínico, o qual não consigo decifrar de cara. Ele tinha um olhar bastante charmoso, principalmente quando colocava as mãos nos bolsos. O que ele está fazendo ali? Será que não tem o que fazer?

—Estava pensando – Quando homem pensa demais, lá vem coisa. –, será que você não poderia me acompanhar hoje à tarde em um passeio a cavalo pelas redondezas?

 Sei muito bem o passeio que ele quer dar. E afinal, eu tenho trabalhos a fazer! Talvez seja apenas uma desculpa para não sair com meus parentes, mas ainda assim tenho trabalho.

—Claro. – Dou um sorriso. – À tarde nos vemos.

 Aceito depois de pensar em passar mais um período do dia com a Laura. Com certeza passar o tempo com o Nicholas deve ser mais proveitoso do que com ela.

 Termino de tomar café da manhã e quando menos espero, um braço envolve ao meu e escuto risinhos animados.

—Vamos? – Laura diz.

 Dou um sorriso amarelo em resposta e saímos pela porta da frente da casa. Passando pela varanda, avisto meu tio, Gaspar, um pouco distante conversando com minha avó e ele me fitou brevemente. Desvio o olhar para a porteira e vejo uma figura larga e baixa sair da fazenda.

 Meu avô saia para algum lugar e sequer escutei a voz dele hoje. Seu Sebastião estava aprontando alguma? Só Deus sabe – se é que ele sabe mesmo.

 Olho novamente para Gaspar, que estava olhando para o meu avô e logo olha para mim de novo e acena com a cabeça levemente.

 Ou eu imaginei tudo aquilo ou ele realmente acenou para mim. Ainda confusa sou puxada para algum lugar atrás da casa.

—Vocês deveriam ter mais um criado aqui, uma só não dá conta. – A garota rechonchuda disse.

—Quantos você tinha?

—Bom. – Ela refletiu, sem graça. – Nenhum.

 Dou um sorriso vitorioso e arqueio uma sobrancelha. Laura estava ditando muitas regras para quem acabara de chegar e eu não iria permitir isso.

 Passamos por Benedita e ela carregava um fecho de lenha no ombro. Quero ajudar, mas ao longe vejo Madalena me lançar um olhar repreensivo.

—Benedita, dá-me um pouco da lenha e um pouco a Laura, te ajudaremos nem que seja um pouco.

 Digo isso, mas Laura me lança um olhar perplexo e cruza os braços, emburrada.

—Celine, o que estas a dizer? – Ela arregala os olhos.

—Qual o problema em ajudá-la, Laura? Ela é uma pessoa como nós. – Falo calmamente, pegando algumas varas de madeira para ajudar Benedita.

 Laura põe a mão na boca e continua chocada com a situação.

—Celine! – Madalena se aproxima, me repreendendo. – Largue essa lenha e deixe a criada fazer o serviço dela.

 Meus olhos revezam entre Benedita, Laura, Madalena e Gaspar – evito o último por motivos de: tem o olhar um tanto intimidador. Poucos milésimos depois sinto as lenhas serem tiradas dos meus braços e do ombro de Benedita – que reclamou em silêncio por não estar fazendo o serviço.

—Parem de briga. Eu levo. – A voz grossa de Gaspar invade o meu ouvido.

A Dama FerozWhere stories live. Discover now