Capitulo 3

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Depois da morte dos meus pais, decidi morar em São Paulo. Anteriormente morávamos na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. ​Na capital paulista era o único lugar onde não havia nenhum familiar. Após o holocausto, precisei mergulhar na solidão para ter mais solidez. Inicialmente resolvi morar na cidade de Santos. Eu precisava do mar. Ele me ajudou na cicatrização das feridas.
​Tudo aconteceu quando decidimos nos aventurar loucamente em um dia de verão no triciclo do meu pai. Ele não comportava três pessoas, mas a responsabilidade ficou em casa naquele dia.
​O velocímetro marcava 120km/h e por tamanha aceleração, não notávamos a natureza, notávamos apenas o vento que nos cortava. Recordo de fixar minha visão nos fios de cabelo da minha mãe, porque eles cegavam a viseira do meu capacete.
​Queríamos sentir a adrenalina, porque ela nos faria seguir em frente com determinação. Nos faria chegar ao destino com maior rapidez. Entretanto, por imensa afinidade com os guidões, meu pai relaxava, crendo que nenhum buraco surgiria na pista. Esqueceu-se de que pedras também são responsáveis por fazer pneus desestabilizarem.
​Houve um barulho. Desaceleramos. Descemos da moto verificando o que poderia ter causado aquele ruído. Não encontramos nada, não detectamos nenhum dano. Deduzimos ter sido somente um pedregulho de passagem. Voltamos a acelerar.
​Com uma impulsividade desenfreada veio o tombo, anteriormente anunciado pela pequena pedra.
​Os corpos voaram enquanto a moto girou em torno de si mesma. Eu não fazia ideia de onde estavam meus pais. Foi tudo rápido demais.
​Deslizando as costas no chão, o asfalto comeu minhas roupas e meus revestimentos corpóreos. Os músculos pintaram de sangue o chão, deixando os pulmões expostos às poeiras. O pinche fervia no sol do meio dia.
​Respiro mal. É quase impossível oxigenar a esponja em sangue. O capacete quase me enforca. Sem saber como, a presilha é afrouxada. Ficou mais fácil de colocar um pouco de ar pra dentro, mesmo as máquinas de oxigenação estando em carne viva.
​Encontrei o céu. Ficou tudo mais bonito por alguns segundos, quando prendi meus olhos na imensidão azul. O resgate chega e eu não sinto dor, pois não sinto o meu corpo.
​Acordei com alguns fios conectados ao meu corpo. Notar a vida conectada num fiapo é assustador. Mantive-me calma quando notei a vontade de desconectar os acessos.
​Os olhos levam algum tempo até pintar na mente o quarto de hospital. O clique de pensamento se faz quando uma voz ecoa no corredor. Sinto cheiro de luvas de dentista. Percebo a palavra "éter" se formando dentro da minha cabeça. O pensamento continuava vivo.
​A voz se materializa em um corpo de jaleco branco e faz carinho nos meus cabelos, afagando a minha alma. A única integridade que restou. Os olhos da voz eram algodões doces e o sorriso era pisar na areia úmida da praia de mar às 16h da tarde, em um dia de verão. Senti o cheiro do mar quando o rosto dela iluminou o meu com afeto. Recebi fleches do acidente e tendi a ficar nervosa.
​O jaleco branco cantou:
​— Que bom que acordou.
​As notas musicais dançavam sobre os bips do eletrocardiograma. O suco da maçã, que atravessa minha mandíbula gessada através do canudo de silicone, é saboreado com olhos fechados. Senti toda a dificuldade daquele processo e aprendi a agradecer as macieiras, prometendo a mim mesma não querer ser uma aceleração desenfreada e sim o silêncio de um cânion.
​O sentimento mais doído que eu já senti foi quando me dei conta de tudo o que havia acontecido. Lembrando-me da cena que antecedeu o choque, quis saber onde estavam os meus pais, pois não os vi ali naquele quarto.
A frase da enfermeira foi o meu despertador durante um longo período de tempo:
​— Infelizmente eles não resistiram à queda.
​Eu tinha quinze anos quando tudo aconteceu. O incidente me fez virar de fato um caranguejo na areia da praia de Boqueirão. Depois de trocar a carapaça, a vibe litorânea, junto com o espírito jovial daquele lugar, me ajudou muito no processo de aceitar a mudança.
​Pisar naquelas águas todas as manhãs por três anos, me mostrou que a vida é um eterno construir de castelos de areias para que as marés os destruam. Só assim aprendi que pra sempre faria diferentes construções. Mesmo um castelo lindamente esculpido poderia vir abaixo. Ninguém é capaz de controlar a força que a Lua exerce sobre as águas.
​Durante anos fiz terapia com Laura através de vídeo chamada. No primeiro mês que vim para cá, as consultas não eram semanais, eram diárias. Eu precisava muito me tirar daquele buraco. Até o dia em que a vida de Laura também precisou de algumas transformações e os ventos a trouxeram para morar na capital paulista.
​Depois de uma ida até a capital para visitar Laura, decidi me mudar. Toda a agitação daquela cidade me fez sentir a vida nas entranhas. Eu já havia ficado muito tempo mergulhada em mim. Era momento de construir mais um castelo e trocar mais uma vez o exoesqueleto.
​Escolhi a rua Avanhandava, no bairro Bela Vista. Tudo ali lembrava muito a minha ancestralidade Italiana por parte de pai. Como eu era filha única, recebi uma herança formidável. Por conta deste privilégio do destino, pude escolher onde moraria. Foi um prato cheio, literalmente, pois além de poder manter viva as lembranças da minha infância, eu me purificava com o ar leve daquelas charmosas árvores que ali moravam.
​O rapaz que fiscalizava os moradores e todas as criaturas que entravam e saiam do prédio, era muito ranzinza. As pessoas evitavam olhar pra ele, já eu nunca desistia de tentar uma interação mais afetiva.
​— Oi! Tudo bem com você? Perguntei atravessando a porta fumê da recepção do prédio.
​Ele estava sentado atrás do balcão de madeira escuro, no canto direito do saguão. Eu jamais vi o corpo dele por inteiro. Analisando o trapézio largo e os bíceps do tamanho de bolas de bocha, tinha uma ideia de como ele era fisicamente. Media um e setenta, pelos meus cálculos visuais. Embora fosse forte, o rosto lembrava o Kiko do seriado Chaves. A sua calvície combinava com os valos na sua testa, causados pela pressão do cenho franzido.
​— Bom dia. Disse ele, voltando a olhar para baixo.
​— Tudo bem com você? Repeti a pergunta me direcionando ao elevador, na diagonal de onde ele estava. Caso não me respondesse, era só entrar no elevador e as portas de metal seriam as únicas testemunhas da possível recusa.
​— Mais ou menos. Ele respondeu.
​Eu fiquei sem acreditar que palavras haviam sido pronunciadas por aquela boca tão muda. Acabei me atrapalhando, entrei no elevador e voltei.
​— O que aconteceu? Eu perguntei.
​— Não consegui minhas férias para esse mês e tinha muitos planos.
​— Puxa... Eu sinto muito por isso. Às vezes as coisas não saem como esperamos, não é mesmo? Mas podemos tentar entender o motivo disso.
​— Entender o porquê de não poder tirar férias já vencidas? Ele franziu todo o rosto intensificando os vincos faciais.
​— É. Quem sabe repensar o emprego? O momento é oportuno para descobrir nossas reais aptidões, já que a economia está falindo.
​Ele me olhou diretamente nos olhos. Aquele rosto franzido se transformou em uma expressão de confusão. Um olhar que atravessava o meu corpo e estacionava em algum lugar dentro dele mesmo. Um movimento bumerangue. Eu entendia muito daqueles olhares melancolicamente pensantes, eu os tinha o tempo todo.
​Sem falar nada, entrei no elevador. Enquanto as portas se fechavam, examinei seu olhar perdido, tentando se encontrar naquela sugestão.
​Imagina se eu contasse a ele que eu dirigia uma nave espacial quando eu era pequena? O olhar dele se perderia de vez. Seria um bumerangue com defeito. Falharia o rumo e se esfacelaria contra a parede. No ato desse pensamento, enquanto desembarcava do elevador em frente à porta branca do apartamento, meu cérebro fez uma sinapse muito rápida, projetando na minha mente imagens do meu sonho da noite passada.
​O movimento de colocar a chave no miolo da porta para entrar em casa se transformou em uma "não-ação". Fiquei tão congelada quanto um iceberg.
​Meus olhos se fixaram na porta enquanto todo o filme começou a rodar. O embargo foi instintivo.
​Era noite e a iluminação estava prejudicada. Não havia ninguém ao meu lado ou mesmo perto. A vegetação era alta e a sensação era de que eu estava em uma fazenda ou algo do tipo. Quando olhei para frente, vi muitos bastões de luz. Eu não conseguia distinguir as cores exatas dos bastões, eram muitas as cores, se misturavam. Caminhei em direção as luzes. As cores estavam aglomeradas em círculos quando me aproximei.
​Olhei para cima e vi uma esfera de cor azul cintilante. Fiquei um tempo observando até entender que olhar pra cima era olhar para o céu. No ato dessa percepção, consegui ver que os bastões coloridos eram corpos. Corpos diferentes. Possuíam luz ao invés de pele e osso. Os corpos de cores luminosas foram sugados lentamente através do holograma. Eles não resistiam em momento algum, fluíam naturalmente. Foi então que senti uma tontura. Quando olhei para baixo, meus pés estavam distantes do solo, eu estava levitando. A porta do meu apartamento ressurgiu.
​Tudo o que eu pude pensar ainda paralisada, foram nas vezes em que eu e Laura falamos sobre o que os sonhos poderiam representar e nos seus possíveis significados.
​Não consegui concluir sobre o que se tratava o sonho. A única atitude que consegui ter, foi tirar os tênis, atravessar a pequena sala amarela iluminada pela luz incandescente dos postes da rua que atravessava a porta da sacada, e caminhar em direção a cozinha. Foquei minha atenção nos meus pés, sentindo a madeira encerada. Senti o toque gelado da pedra de mármore da mesa da cozinha, onde descansei as chaves. Voltei para a sala, acendi o abajur e me atirei no velho sofá amarelo. Afundei-me em pensamentos relembrando o meu corpo subindo até aquela... nave?

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⏰ Last updated: Feb 09, 2021 ⏰

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Nave da Oitava Assim na Terra como no Céu Volume 1Where stories live. Discover now