Livre

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— Fuja — ele sussurra.

Sacudo a cabeça.

— Não posso.

Ele se levanta da maca, mas tenho a sensação de cair enquanto ele permanece imóvel. Não consigo decifrar sua expressão. Navalha se fechou para mim. Estou presa no vazio de novo. Não posso suportar. Ela vai me esmagar, a ausência com que viví durante tanto tempo que mal a notei. Não até este momento: ele me mostrou o quanto o vazio era imenso ao preenchê-lo.

— Eles não vão pegar você — ele insiste. — Como eles poderiam pegar você?

— Ele sabe que não vou fugir enquanto estiver com ela.

— Ah, Deus. O que ela é para você, afinal? Ela vale a sua vida? Como uma pessoa pode valer toda a sua vida? — é uma pergunta cuja resposta ele já conhece. — Certo.

Faça o que você quiser. Como se eu me importasse. Como se fosse importante.

— Essa é a lição que eles nos ensinaram, Navalha. O que importa e o que não importa. A única verdade no meio de todas as mentiras.

Ele pega o rifle e o pendura no ombro. Ele beija minha testa. Uma bênção. Uma graça. Depois ele apanha a lamparina e caminha hesitante até a porta, o vigia, o cuidador, o que não descansa, não se esgota ou vacila. Ele se recosta na porta aberta, voltado para a noite, e o céu acima dele queima com a luz fria de dezenas de milhares de piras que marcam o tempo se acabando.

— Fuja — eu o escuto dizer. Acho que ele não está falando comigo. — Fuja.

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No oitavo dia, o helicóptero volta para nos buscar. Deixo que Navalha me ajude com as roupas, mas, além de algumas costelas doloridas e um par de pernas fracas, os 12 elementos coletivamente conhecidos como Especialista estão em pleno funcionamento. Meu rosto sarou totalmente, não ficou nem mesmo uma cicatriz.
No trajeto de volta à base, Navalha está sentado à minha frente, estudando o chão e olhando para mim apenas de vez em quando. Fuja, ele diz movendo apenas os lábios. Fuja.

Terra branca, rio negro, o helicóptero faz uma curva pronunciada e desce contornando a torre de controle do aeroporto, perto o bastante para que eu veja um vulto alto e solitário atrás das janelas coloridas. Aterrissamos no mesmo ponto em que decolamos, outro círculo completo, e Navalha pega meu cotovelo para me guiar para a torre. No trajeto para o alto, ele envolve minha mão rapidamente.

— Eu sei o que importa — ele diz.

Vosh está parado do outro lado do aposento de costas para nós, mas vejo seu rosto refletido fracamente no vidro. Ao lado dele se encontra um recruta corpulento agarrando um rifle ao peito com o desespero de alguém pendurado em um desfiladeiro com quilômetros de profundidade por um cordão de sapatos. Sentado ao lado do recruta, usando o macacão branco-padrão, está o motivo de eu ter vindo para cá, minha vítima, minha cruz, minha responsabilidade.

Teacup começa a se levantar quando me vê. O recruta grandalhão põe a mão em seu ombro e a empurra de volta para a cadeira. Sacudo a cabeça e movendo apenas os lábios digo não.

O aposento está em silêncio. Navalha está à minha direita, parado ligeiramente atrás de mim. Não posso vê-lo, mas ele está perto o suficiente para que eu escute sua respiração.

— Então — Vosh profere a palavra, um prelúdio. — Você resolveu o enigma das rochas?

"— Um rato sem esperança é um rato morto, porque você acha que eles não jogaram uma rocha para acabar com nós de uma só vez?"

— Sim.

Vejo pelo vidro escuro quando ele sorri tensamente.

— E?

— Atirar uma pedra muito grande iria invalidar o propósito.

— E qual é o propósito?

— Que alguns vivam.

— Você esqueceu a questão principal. Você pode dar uma resposta melhor.

— Você poderia ter matado todo mundo, mas não matou. Você está incendiando a vila para salvá-la.

— Um salvador. É isso que sou? — ele se vira para me olhar. — Desenvolva a resposta. Tem que ser tudo ou nada? Se o objetivo é salvar a vila dos aldeões, uma rocha menor teria conseguido o mesmo resultado. Por que uma série de ataques? Por que as artimanhas e os artifícios? Uma rocha é muito mais simples e direta.

— Não tenho certeza — confesso. — Mas acho que tem algo a ver com sorte.

Ele me olha fixamente por um longo momento e então concorda com um gesto de cabeça. Ele parece satisfeito.

— O que vai acontecer agora, Especialista?

— Você vai me levar para o último local em que se sabe que meus amigos estão — respondo.

— Você vai me deixar lá para rastrear Evan Walker

— Quem é Evan Waker Especialista?

— Ele é uma anomalia, uma falha no sistema que
não pode ser tolerada.

— Mesmo? E como pode um pobre peão humano representar algum perigo?

— Ele se apaixonou, e o amor é a única fraqueza.

— Por quê?

Ao meu lado, a respiração de Navalha. A minha frente, o rosto erguido de Teacup.

— Por que o amor é irracional — digo a Vosh. — Ele não obedece regras. Nem mesmo às próprias. O amor é a única coisa no universo que é imprevisível.

— Preciso respeitosamente discordar de você nessa questão — Vosch fala e olha para Teacup. — A trajetória do amor é totalmente previsível.

Ele se aproxima, inclinando-se sobre mim, um colosso cortado da carne e ossos com olhos claros como um lago de montanha penetrando do fundo de minha alma.

— Por que eu iria precisar de você para rastrear a ele ou a qualquer outra pessoa?

— Você perdeu os drones que monitoram Evan e todos os outros como ele. Ele não está no sistema. Ele não sabe a verdade, mas sabe o suficiente para causar sérios danos se não for impedido.

Vosh ergue a mão. Eu me encolho, mas a mão dele pousa no meu ombro, que ele aperta com força, o rosto brilhando de satisfação.

— Muito bom. Muito, muito bom.

E, ao meu lado, Navalha sussurra.

— Fuja

A pistola detona ao lado do meu ouvido. Vosh cambaleia para trás até a janela, mas não é atingido. O recruta grandalhão cai de joelhos, batendo a coronha no ombro, mas ele também não é atingido.

O alvo de Navalha era a menor coisa que é a soma de todas as coisas, sua bala a espada que separa a corrente que me prendia.

O impacto joga Teacup para trás. A cabeça dela se choca no balcão atrás dela, os braços finos como gravetos voam para o ar. Viro bruscamente para a direita, na direção de Navalha, a tempo de ver seu peito destroçado pelos tiros do recruta ajoelhado.

Ele se atira para frente e meu braço se ergue instintivamente, mas ele cai muito depressa. Não consigo pegá-lo. E olhos suaves e comovedores se levantam até os meus no final de uma trajetória que até Vosh falhou em prever.

— Você está livre — Alex sussurra. — Fuja Marika

O hub ilumina o elemento muscular quando salto direto para a janela que se abre para a pista de pouso, pulando de dois metros de distância e girando o ombro direito na direção do vidro.

E então estou no ar, caindo, caindo, caindo.

Você está livre.

Caindo.

Vence quem persevera (Concluída)Where stories live. Discover now