Prólogo - Scarllat

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Meses atrás...

Fechei a última caixa com meus pertences e a levantei em meus braços. Era o fim do único lugar que eu tinha conhecido como casa.

Saí do meu quarto, fui para a sala e não tive tempo de dar uma última olhada no lugar, porque Júnior apareceu na porta de entrada e, com seu semblante sério de costume, pegou a caixa e fez um movimento de cabeça para eu o seguir.

Sempre com pressa. Impaciente.

Tia Neide costumava dizer que ele ainda iria morrer do coração, de tanto que andava estressado. Mesmo com três ex-esposas e tendo filhos com duas delas, ele deveria respirar fundo e relaxar.

Eu sabia que seria deselegante da minha parte e não o incomodava com comentários sobre seu jeito de ser. Talvez, se o fizesse, lembraria à tia, mãe dele. Ela não era nada minha, por mais que, na minha mente, eu a intitulasse daquela forma. Nem Júnior fazia parte da minha família, eu era sozinha.

Os nomes de pais na minha certidão de nascimento eram simbólicos, porque eles não existiam de verdade. Fui criada por duas pessoas que me permitiram vê-las como figuras familiares, mas não me permiti chamá-las de nada além do nome. Tia Neide foi minha mãe e Júnior, um pai, mas também, irmão.

Abandonaram-me na porta da família Oliveira, vinte e um anos atrás. Eu tinha poucos dias de vida e, para não me deixar sob a guarda do Governo, Neide me registrou em uma cidade do interior e me criou como sobrinha.

Ela sempre deixou clara a minha origem e o papel dela na minha vida. Nunca exigi carinho ou amor, até porque, os Oliveira não sabiam demonstrar afeto tanto quanto eu não fazia questão. Não dava para sentir falta de algo que nunca tive.

Meu sonho era sair de casa e ter meu próprio canto, por isso, economizei nos últimos meses. Só não imaginava que, no aniversário da minha chegada àquela família, tia Neide partisse para a eternidade.

Se eu estava esperando um empurrão para cuidar da minha vida, aquele foi mais do que o necessário. Eu, Neide e Júnior morávamos juntos e, apesar do meu primo-pai ter suas esposas e filhos, ele as mantinha longe de nós.

Éramos uma família conveniente, onde eu cuidava dos afazeres da casa, tia Neide fazia bolos sob encomenda e Júnior era dono de uma lanchonete. Às vezes, eu o ajudava fazendo uma grande limpeza no seu estabelecimento no dia da semana que ele não abria.

Por muitas vezes, era feita de faxineira, mas não reclamava. Sentia que, prestando aquele serviço, eu compensaria o teto que me deram quando meus pais não me quiseram. Conhecia histórias de meninas que foram abandonadas e meu destino, por mais que ainda faltasse muita coisa para ser ideal, fora melhor do que de muitas outras.

Eu valorizava a sorte de ter tido duas pessoas que não me deixaram faltar comida e cuidaram de mim quando adoeci. Tentava evitar conflitos e os obedecia sem muitos questionamentos, o que incluía: sem festas, amigos ou bebidas.

Passei a fase do colégio em meu canto e a faculdade, mais retraída ainda. Não me conectava o suficiente para ter amigos, apesar de sempre me convidarem para tudo o que faziam. Deixei de ir ao cinema, festas no campus e jogar baralho, apenas para voltar para casa no horário determinado por Neide e Júnior.

Eles eram os meus guias e ditavam o caminho. Naquele momento, eu havia perdido uma referência e estava sendo deixada à minha própria sorte.

— Vamos, Scarllat. — Júnior estava impaciente na frente da casa.

Tranquei a porta, dei passos apressados para a caminhonete velha dele e subi na carroceria, para segurar minhas coisas, já que não havia corda ou lona para as manter firmes.

— Está firme aí? — perguntou, abrindo a janelinha da cabine.

— Sim, eu dou um jeito. — Estiquei os braços, agachei e orei para que nada caísse em cima de mim, ou na rua.

Ele deu partida, estiquei minha perna para impedir que uma caixa se movimentasse e seguimos viagem até o outro lado da cidade. Meu novo lugar seria perto da universidade e longe de Júnior.

Com a morte de Neide, a casa tinha sido vendida. Meu primo-pai foi morar com Jucélia e sua vida estava se tornando um caos, porque Lenilce e Rosana estavam com ciúmes de ele ter escolhido uma delas ao invés de não manter todas em um mesmo patamar. Eu não sabia como ele conseguia atender as três, ainda mais sendo ex. A única coisa da qual eu tinha conhecimento era que ele pagava a pensão dos filhos e os amava muito mais do que a mim.

Bem, nada surpreendente nisso.

Com uma cama de solteiro, colchão e fogão velhos, eu teria uma geladeira improvisada com isopor e as caixas seriam meu guarda-roupas até que eu conseguisse um cartão de crédito para comprar, de forma parcelada, o que me faltava.

O aperto no peito tinha tudo a ver com estar sozinha no mundo. Órfã. Eu odiava ficar sem ninguém por perto, por isso era muito obediente. Morria de medo de dormir sem saber que Neide ou Júnior estavam por perto. Muitas vezes passei a noite em claro, esperando os dois voltarem da lanchonete.

Teria que aprender a me virar. E, como sempre fui boa em executar ordens, fui atrás de um lugar para morar quando Júnior me intimou a seguir minha vida. Formada, mas sem emprego, a vida adulta tinha chegado e, como ele gostava de salientar, eu não era sua filha para ele me bancar.

A mudança foi rápida. Assim que chegamos à quitinete de um cômodo, meu primo-pai colocou tudo para dentro, montou a cama de solteiro e olhou para mim por alguns segundos. Se não o conhecesse, eu poderia acreditar que ele estava preocupado com o que poderia ser de mim.

— Vai ficar bem? — Com as mãos na cintura, franziu a testa e me impediu de ser sincera. Eu estava apavorada, queria ficar com ele.

— Já tenho vinte e um anos. Preciso caminhar com as minhas próprias pernas. Ser independente. — Suspirei e forcei o sorriso, um que nunca foi sincero para ninguém. — Foi isso que Neide falou para mim nos últimos dias de vida.

— Sim. Você precisa se cuidar e não dar conversa para ninguém, entendeu? — Esticou o braço e apertou a nuca, como ele fazia quando eu era criança e queria conversar sério. — Só não te dou emprego na lanchonete porque já tenho coisa demais na cabeça para me estressar com Lenilce. Encontre algo na sua área.

— Tudo bem. Quando precisar daquele faxinão, pode me chamar.

— Eu vou.

Seus dedos apertaram meu pescoço. Esperei que ele me abraçasse ou desse um beijo na minha testa, como fazia quando eu era menor, mas só saiu sem olhar para trás.

Júnior tinha muitos cabelos brancos, postura curvada e uma barriga saliente. Era um ótimo pai para os seus filhos e sempre sonhei que ele pudesse ser da mesma forma comigo, mas eu era dura como pedra. Para me lapidar como pessoa, usaram estacas ao invés de beijos e abraços.

Minhas pernas perderam as forças quando me deparei com aquele lugar apenas comigo. Sentei-me no chão, depois me deitei de costas e encarei o teto por incontáveis minutos.

Sempre fui sozinha. As pessoas que eu considerava minha família me lembravam disso todos os dias. Eu não sabia em que momento me iludi de que teria Neide e Júnior para sempre, afinal, eles já eram velhos quando surgi na vida deles.

Cuidar de mim. Essaera a minha missão.

O Acordo (A Virgem e o Professor CEO) - DegustaçãoWhere stories live. Discover now