Capítulo 1 - Scarllat

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Ainda bem que tive alguns meses para processar minha nova vida solitária. A insônia ainda era uma constante, mas o medo parecia ter diminuído... ou estava apenas escondido enquanto eu fingia que vivia como uma adulta responsável.

Como morava perto da universidade, eu usava o laboratório de informática do meu curso de graduação para fazer os trabalhos virtuais que arranjei enquanto não conseguia um emprego real.

Meu sonho era ser programadora. Quebrava um galho como designer e com a criação de manuais, portfólios e apresentações profissionais, mas eu era da lógica, gostava de escrever código e focar na criação de um sistema que enchia o meu peito de satisfação.

Não que eu já tivesse feito isso antes, mas era nas aulas de linguagem de programação que minha dedicação transbordava.

Formada em Análise e Desenvolvimento de Sistemas, a única experiência de trabalho que eu tinha era com atendimento ao cliente, além dos freelances virtuais que eu fazia.

Minha veia de liderança era quase nula. De acordo com o professor Samuel, eu deveria ter sido inabilitada de colar grau, já que não tinha ido bem em nem um dos trabalhos que ele havia passado. Empreendedorismo era mais difícil que linguagem de baixo nível. Que me pedissem para programar em Assembly, mas não para abrir uma empresa.

Eu era boa em cumprir ordens, não em as dar.

Com a ajuda do conselho docente e por aquela ter sido a única matéria de prova final em que eu ficaria, os professores decidiram me passar. Tendo a nota máxima no meu TCC, nada me impediria de conseguir o meu diploma, nem aquele professor chato metido a intelectual.

Por eu ter sido a única mulher da turma, era protegida ao mesmo tempo que ignorada. Os rapazes eram simpáticos comigo, mas nenhum me dava oportunidade, nem aceitava meu currículo para indicar nas empresas em que trabalhariam.

Sozinha. Todos os dias eu tinha indicação de que ninguém faria por mim, por mais próximos e solícitos que fossem.

E, por ironia do destino, eu me atraía por aqueles que me desprezavam. Professor Samuel era alguém que eu queria que mudasse de opinião sobre mim. Não que eu fosse me tornar uma empresária de sucesso, mas havia beleza em ser uma ótima executora de ordens.

A segurança de ter quem mandasse e indicasse a direção me ajudava a descansar. Eu estava sem dormir há muito tempo e, depois daquele acontecimento, ficaria cada vez pior.

Da forma que aconteceu com Neide, Júnior também faleceu. Infarto fulminante. O problema de coração era hereditário e, por mais que me preocupar indicasse que eu fazia parte da família, eu não precisava visitar um cardiologista como Pedro, o filho mais velho do meu primo-pai.

Com seus dezesseis anos e obesidade nível III, ele precisava de acompanhamento especializado e isso requeria dinheiro. Jucélia, a esposa que Júnior mantinha mais próximo, me incumbiu de vender a lanchonete, não importava como.

Mesmo não sendo da família, descobri que Júnior me colocava como contato de emergência para suas mulheres e filhos. Mesmo Lenilce, com quem ele não tinha filho, mas sustentava, também veio até mim, pedindo ajuda para dividir o dinheiro entre elas.

Tinha sido um velório e tanto.

Prática e aceitando qualquer proposta, consegui vender o ponto comercial e os equipamentos da lanchonete. Naquele dia, antes de entregar tudo para os futuros donos, eu limpei e organizei o local. Relembrei alguns momentos e deixei que a música, a minha única companhia nos últimos dias, me desse o abraço necessário para passar por mais um luto.

"Eu acerto do lado cego

Você está paralisado, estou indo rápido

Eu te deixei hipnotizado

O Acordo (A Virgem e o Professor CEO) - DegustaçãoWhere stories live. Discover now