Amália foi criada para ser esposa troféu. E nunca se contentou com essa ideia para o seu futuro. Buscou estudar e sair do estereótipo criado dentro da família tradicional em que cresceu que mulheres deveriam ser apenas prensadas dentro das obrigaçõe...
Leio a carta que o advogado me entregou e ainda não consigo entender como fui tão ausente nos dois últimos anos? Tive a melhor avó que alguém poderia sonhar em ter, fui em todos os Natais, nunca deixei passar um aniversário, fugida é claro, visitar a mulher mais doce que já conheci e ela tem razão sobre a mulher que chamo de mãe, sobre meu pai, sobre todos. Minha avó Dona Cecília ou apenas Cecinha como se tornou conhecida, pelos doces maravilhosos. Sempre teve razão sobre cada um deles. Cresci estudando nas melhores escolas, aprendi inúmeros cursos, entre idiomas e artesanatos, tive aula sobre política, saúde e educação, para no fim ser praticamente forçada a deixar de viver. Pelos meus pais, estaria casando-me hoje com um desconhecido, alguém com nome o bastante para que meus pais pudessem continuar com suas vidas de aparências. Fui estupidamente criada para ser um troféu. Não podia deixar-me podar justamente quando começava a florescer e então veio o advogado com a carta de vovó e a ideia de fingir aceitar para fugir e nunca mais voltar. Tínhamos nossas economias, uma conta que meus pais nunca sonharam existir, apesar de ter um cartão adicional, nunca senti-me tentada a saber o valor, até hoje. A pequena propriedade rural citada na carta é tudo, menos pequena. Tenho vacas leiteiras, alguns suínos, muitas galinhas, horta, pomar variado e alguns cavalos. Como vou cuidar de tudo isso se não sei como tirar leite ou plantar mais que flores ou tomates? Vou precisar de muita ajuda profissional, e não faço ideia do por onde começar.
- Senhorita, preciso que assine os papéis. Sua avó sempre soube que chegaria esse momento e deixou tudo registrado em testamento particular e inventário de bens. Fiquei como curador até que se formasse e só não havia chegado até você por ser sempre afastado pelos seus pais ou irmãos, nunca falei quem era, pois não deveria levantar suspeitas e quando seu namorado sumiu misteriosamente, achei prudente aguardar uma nova oportunidade.
- Ela sofreu? - Precisava saber se os últimos dias dela foram ruins.
- Não. Assim que descobriu sobre a doença, fez o possível para levar a vida de maneira mais saudável, então ela deixou a pequena casa e a loja de doces e foi para a propriedade que agora é sua, já estava toda reformada como você vai ver. Quando ela fechou a loja de doces, se manteve com os lucros dos investimentos. Por ser uma mulher visionária, sempre teve bons rendimentos, sua conta rende alguns milhões por ano graças ao faro empresarial que ela tinha. Sua avó dormiu e não mais acordou. Foi dessa forma que ela partiu. - Dei um pequeno sorriso antes de falar junto com o advogado.
- Ela partiu como sempre quis partir.
Ele continua lendo o inventário dos bens e me vejo cada vez mais perdida, como vou cuidar de uma fazenda tão grande se mal sei cuidar de mim nesse momento? Vou precisar de ajuda profissional, não vai ser fácil esconder por muito tempo tudo o que herdei, entretanto, farei o possível para não deixar que meus pais, irmãos ou avô saibam sobre isso, eles não merecem desfrutar dos bens que ela adquiriu com tanto esforço e muita paciência.
- Vou precisar da sua ajuda. Pretendo manter a loja de doces de Higienópolis, conheço todas as receitas, foi onde nos encontramos. Também vou precisar de um engenheiro agrônomo, um veterinário, e quero os melhores e mais capazes que puder encontrar. Pretendo te manter como meu advogado por algum tempo, afinal você melhor do que ninguém conhece tudo o que herdei e o principal, conhece a ambição dos meus familiares e sabe o que pode ser feito dentro da lei para os manter longe. Agora que fugi para não casar tornei-me a ovelha negra da família, porém conheço cada um deles e estou certa sobre a vontade que vai despertar em cada um, em demonstrar o quanto a minha avó era maravilhosa, quando descobrirem tudo o que ela deixou sob sua curadoria até o momento.
- Mesmo se me dispensasse, ainda continuaria recebendo meu salário. Sua avó me contratou por tempo indeterminado. E tem o fato de que a propriedade rural só poderá ser passada para o seu nome depois que ela começar a gerar lucros consideráveis dentro dos requisitos estipulados por dona Cecília. Sua avó pensou em tudo sobre seus familiares, não se preocupe, nada que te pertence poderá ser deles em momento algum. O que mais preciso providenciar? Vai manter todos os funcionários da propriedade rural?
- Não pretendo desabrigar, tão pouco dispensar ninguém. Mas não sei como administrar algo dessa magnitude. Creio que vá precisar de um bom marqueteiro para a loja de doces após a reforma que já foi iniciada. Quero conhecer a propriedade e quem sabe me mude pra lá até que possa ser possível habitar essa pequena casa.
- O que duvido muito sobre você morar aqui, depois que conhecer aquele lugar. Sua avó era apaixonada por tudo naquele lugar e se você é como sempre ouvia ela contar, vai se apaixonar e apenas manter a casa e loja dentro dessa propriedade como sua avó fez. Vai por mim. Principalmente depois da reforma que ela fez na casa inteira modernizando tudo, a cozinha é um sonho. - Sorri, porque no fundo sabia o quanto ele estava coberto de razão.
Vó Cecília comprou a enorme propriedade que um dia pertenceu a alguma família tradicional, de nome conhecido e respeitado. Não era tão grande como agora, primeiro ela comprou os terrenos ao redor da enorme casa antiga e depois ofereceu um valor pela casa, como não havia para onde o antigo dono correr sem desvalorizar tanto o imóvel, ela comprou sem que ninguém soubesse que já era a proprietária dos demais terrenos. Podemos dizer que agora sou muito rica e que não preciso de um casamento para manter a aparência que meus pais querem, contudo, eles jamais saberão que herdei tudo isso, quando fugi deixei para trás todo e qualquer meio de contato e tudo o que tinha até então era a nossa pequena casa nos fundos da pequena lojinha de doces. Algo que sempre foi motivo de descaso em relação ao tipo de vida que minha avó levava, sempre muito simples. Meu pai odiava as minhas fugas para aprender uma nova receita, ao contrário de minha mãe que sempre dizia ser bom saber cuidar da casa e futuramente do marido. Coisa que ela não sabe fazer até hoje. Desde que fugi para não casar, estou escondida na casa que era de minha avó, ainda em higienópolis, não pretendo ficar aqui por muito mais tempo, vou junto com o advogado conhecer a propriedade localizada nas divisas dos estados.
- Quando podemos viajar?
- Amanhã mesmo, Amália. Quer que providencie mais alguma coisa antes de irmos. Talvez roupas, não é prudente viajar vestida de noiva, ou com essas roupas antigas.
- Teria como comprar sem levantar suspeitas? Agradeceria muito se pudesse. Não quero ter que sair e correr o risco de ser encontrada pelo bando de loucos que fazem parte da minha família.
- Tenho uma filha e uma sobrinha, vou pedir que elas façam isso. Saímos logo após o almoço, assim dá tempo que elas comprem roupas e tudo o que você precisa. Já consegui seus documentos com a funcionária do solar, ela quer saber se a "sinhazinha'' vai mesmo levar a família dela pra casa nova?
- Sim. Aquele lugar não é bom pra ela. Só não sei como fazer para levá-la amanhã mesmo.
- Isso eu tenho como providenciar também. Descanse, logo cedo as meninas estarão aqui com tudo novo e quando for para irmos embora, sua antiga babá estará comigo.
Agradeci e deixei que fosse embora, estava livre de um velho asqueroso e não queria ser encontrada pela minha família, há essa hora a vergonha está completa. Pelos meus cálculos todos devem estar querendo a minha cabeça por não ter aparecido na igreja. Jamais casaria sem sentimento algum, e nunca me perdoaria se desse continuidade ao legado triste dos Bragança Matarazzo. Uma vida inteira sem saber o quê é o amor, não é uma vida.
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