Capítulo 2

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Crec, crac, cric, crec, crac, quec, quec.
Esse é o som dos dez passos: Pedro, Clara, Eu e Carinho.
Depois de serem meus primeiros companheiros durante a aula, eles se voluntariaram a ir comigo para casa.
Clara pede para segurar Carinho, enquanto vou andando chutando as pedrinhas do caminho, envergonhada.
- Seu cachorro é lindo, Melissa!
- Brigada. Tenho esse Amorzinho desde que aprendi a andar.
- E ah, desculpe por perguntar, mas você nunca enxergou absolutamente nada? - Interrompe Pedro, que estava distante, mas se aproxima com um ar de curiosidade.
- Claro que eu enxergo! Só que não pelos olhos, esses dois aqui nunca tiveram utilidade nenhuma. Eu sinto, eu cheiro, eu ouço. Mas olhar, assistir, observar... Não tenho nem a vaga ideia do que seja.
- sério? E dizem que pessoas assim, desculpe a palavra, diferentes, têm tipo superpoderes, é verdade??
Eu ri da inocência da Clara.
- Não temos, só não faço as coisas iguais a vocês! E gostei dessa palavra, diferentes. Não gosto quando nos chamam de deficientes, não é como se faltasse algo em nós. Quando a natureza nos tirou a visão, nos deu o, se você gostar de chamar assim, super-poder de enxergar de outros modos. 

- Que legal, Mel, posso te chamar assim, né? 

- Claro que pode, Clarinha!

Depois de 15 minutos de conversa animada com os meus novos amigos, descobri algumas coisas sobre eles: Clara e Pedro têm 15 anos, e são irmãos gêmeos. (Não me pergunte se eles são idênticos) e se mudaram de minas com a sua mãe, que se recém-separou de seu pai. Clara ama animais, fácil de perceber pelo seu rápido afeto por Carinho. E Pedro tem uma paixão por música, assim como eu. Ele toca violão e guitarra, e eu, bem... Eu toco bateria desde os meus 10 anos de idade. 
Tocar bateria é minha paixão. Me sinto em outra dimensão quando pego minhas baquetas e começo a tocar alguma coisa, a bater nos tambores. Com o seu rufar, suas batidas, é como se eu as visse, eu as sinto. Cada tambor tem um som diferente dos outros: é como se cada um fosse uma cor diferente (que eu nunca vi, claro, só as conheço pelos nomes) e, tocando-os juntos, forma uma explosão, uma junção delas.... Como se fosse um arco-íris! A bateria é meu sol, e as baquetas, a chuva, que forma o lindo arco-íris. O meu arco-íris. 

Chegando em casa, me despedi dos irmãos, e um degrau, portão, descer degrau, corredor, porta de casa. Ouço Carinho latindo e correndo em direção ao quintal, anunciando nossa chegada. 

- Oi, Meli, como vai minha querida???

Fala minha mãe, concentrada. A televisão está ligada.

- Foi ótimo, mãe! Conheci uns... 

Ouço o toque conhecido de seu celular. 

- Desculpe, meu amor! Ah, sim... Estou indo! Querida, seu pai está que chamando para jantar, ele conseguiu reservas para o restaurante chiquérrimo da cidade! Tem dinheiro na mesa da cozinha e comida na geladeira, estou indo, mamãe te ama!
Obrigada por convidar, mamãe. Claro que ama! Ama tanto que me deixa sob cárcere privado a base de miojo e coca-cola. 
Minha mãe nunca mais foi próxima de mim, desde o falecimento de meu pai.
Eu tenho uma teoria de que todos nós temos um jeito de encarar a perda. Uns choram. Outros buscam apoio. Outros se excluem da sociedade, outros, usam drogas. Aparentemente, minha mãe encara a perda gastando todo o dinheiro de seu marido (que ela insiste que eu chamr de pai) em boutiques e restaurantes caros na falha tentativa de preencher o buraco vago no seu coração, antes ocupado pelo meu pai. Eu só sigo em frente.

Fui em direção à cozinha e abro a geladeira, primeira, segunda prateleira... Abro o primeiro pote que toco.
O abro e sinto seu cheiro: Lasanha.
O cheiro forte de carne envolve minhas narinas e me faz querer vomitar.
Uau, esse mulher me conhece tanto que até lembrou que eu sou vegetariana e me deixou essa bola de sangue bovino!
Fecho o pote, junto com a geladeira e pego meu celular.

- Discar para pizzaria. 

-  Oi, qual é seu pedido?

- Oi Daniel, aqui é a melissa!

- Oi Mel, o que aconteceu? E qual é seu pedido?

- O de sempre, a Madame me deixou com suprimentos de, eca, boi ralado. E quero o de sempre também, inteira vegetariana e com queijo extra!

- Uma pergunta, se você ama tanto as vacas, por que só come derivados de seu leite?

- Porque é uma delícia! Vai logo, que estou morrendo de fome. E não esquece do meu refri, fanta! 

- É pra já, Mel! Seu pedido está anotado. 

- Valeu, Dani!

Daniel trabalha na pizzaria à duas quadras daqui, como atendente e entregador. Acho que antes eu exagerei um pouco a dizer que não tinha amigos, pois Dani é o melhor e único deles, o conheço desde que me lembro por gente.
Não o considero apenas um amigo, ele é como um irmão para mim.

Depois, vou até meu quarto, jogo a mochila na cama e apalpo minha escrivaninha até achar meus dois bebês: Minhas baquetas. Sento no banquinho em frente à bateria, e começo a produzir meu som, o arco-íris na vida de chuva, e penso nos meus novos amigos. Estou ouvindo uma música na minha cabeça, daquelas bem alegres, e tenho certeza de que desta vez não sou eu que a estou tocando. 

Invisível aos olhosWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu