Leo de schrödinger

62 14 37
                                    


⚠️ AVISO DE GATILHO: depressão, luto, disforia e dissociação;
>> Tenha uma boa leitura:)


"E vê se almoça."
Maia ordenou, fechando a porta atrás de si.
Daniel revirou os olhos, novamente aumentando o volume de sua série favorita.
Tinha certeza de que Maia estava preocupada, e sabia que a amiga possuía seus motivos, apesar de não gostar da atenção e cuidado sufocantes.
A aparência provavelmente não contribuía em sua defesa ao pedir pelo menos cinco minutos sozinho, sem qualquer pergunta ou carinho excessivo.

Pelas últimas semanas evitara qualquer espelho no apartamento.
Não sentia reconhecer a própria figura.
Um rosto pálido, ainda mais do que antes, mesmo que as milhares de sardas continuassem o salpicando por inteiro.
Os olhos agora eram quase sempre cinzentos, acompanhados de um par horrendo de olheiras profundas, ainda mais escuras em contraste com a pele desbotada.
Cabelos descuidados e embaraçados. Admirava-se de ainda não estar totalmente careca, tamanha quantidade de tufos inteiros caídos no banho.
Poderia facilmente se comparar com a versão cadavérica de uma barbie abandonada na caixa de brinquedos.
Mal cuidado, melancólico e solitário.

Sua barriga roncou e ele suspirou mais uma vez.
Não estava no humor de enfrentar a enxurrada de preocupação de Helena, com perguntas e comentários invasivos.
Abaixou a tela do notebook e se encolheu para o canto da cama, o máximo contra a parede quanto conseguia.
Lentamente, fechou os olhos e ignorou a fome, a dor de cabeça e a fadiga.

Brevemente, pensou no litoral, em suas antigas memórias e no modo como a pele pinicava sob a água quente no banho pós praia.
Pensou em Maia, no papel de irmã e melhor amiga que insistia em manter mesmo com Daniel cada vez mais afastado.
E em como aquilo o irritava.
Thiago também. Seu sorriso, olhos cor de avelã e modo de pacientemente explicar a lição de química para Maia.
Química quase parecia interessante, ensinada pela sua voz.
Por pouco tempo, seus dedos frios pareceram se aquecer.

Enfim, o rosto de Leo lhe cutucou no fundo da mente, mesmo que agora os pensamentos estivessem confusos e enevoados pelo sono.
Não se recordava da última conversa dos dois. Naquela sexta-feira, há mais de um mês e meio.
Provavelmente teria brigado com Leo, xingando-o ou pior.
Não saber se Leo tinha noção do quanto fazia falta lhe incomodava mais do que gostaria de admitir.

Odiava aquele maldito conceito de "Leo de schrödinger", como insistia em chamar.
Não acreditaria na morte do amigo sem um caixão e um túmulo.
Ao mesmo tempo, não poderia crer em seu sumiço, no abandono da própria vida para algo incerto e simplesmente trágico. Isso se estivesse vivo.
Deste modo, por tempo indeterminado, Leo permaneceria vivo e morto, odiado e amado, depressivo e falso, machucando-se em silêncio ou desabafando discretamente, todos ao mesmo tempo.
Preso no limbo das memórias dos três amigos.
No limbo da dúvida, da dor e da saudade.
Daniel sabia que todo e qualquer pensamento envolvendo a incerteza do estado de Leo lhe consumiria de dentro para fora, semana após semana.
Não poderia considerar a ideia da dor passar. Não sem a volta do amigo.
Havia mentido ao tranquilizar Maia, dizendo que algum dia, de algum jeito, aquela aflição iria diminuir. Era um hipócrita.

Fez a curva em mais um corredor de azulejos brancos e azuis, seus tênis cantando de maneira agonizante no chão liso.
Suas pernas latejavam, doloridas pelo esforço de subir diversos lances de escadas sem elevador algum como auxílio.
Ele ofegou, o ar frio machucando seus dentes e congelando os pulmões.
Logo, finalmente encontrou o quarto procurado.
Número 1002.
Fechou os olhos e os limpou com a manga de seu moletom, precisando de um tempo para regular sua respiração dolorida.
"Só entra. Só entra, e dá um soco nele. Por preocupar todo mundo."
Sussurrou para si, silenciosamente abrindo a porta do quarto de hospital.

Precisou se apoiar na parede ao lado, as pernas fraquejando como se finalmente assumissem o cansaço da corrida.
"Ah, que fofo, quase desmaiou com a minha beleza."
A voz rouca de Leo cumprimentou, o mesmo sorriso sapeca e olhos escuros agora parecendo cansados.
Daniel não respondeu, absorvendo cada detalhe da cena à sua frente.
Leo usava uma camisola padrão de hospital, seus braços estavam enfaixados e diversas partes de seu pescoço cobertas com gaze.
O rosto parecia ileso, sem os óculos de armação enorme e nem seu brilho animado de sempre.
Leo parecia pura e simplesmente esgotado.
"'Cê tá um lixo."
Daniel cumprimentou, recebendo uma risada em troca.
"Eu não ganho nem um abraço?"
Leo questionou, forçando um olhar pidão.
"Sem abraço, não quero ficar com cheiro de churrasco."

Ele se aproximou devagar, estendendo ambas as mãos para segurar uma do amigo.
Apertou-a com cuidado, como se testasse a veracidade de sua carne, osso, pessoa e presença.
Leo piscou. O gesto de Daniel parecia ter machucado a pele sensível, mesmo não se afastando.
"É você?"
Daniel perguntou baixo.
Sua mente parecia ser lançada de um lado para o outro entre as informações apresentadas.
Em um momento, tinha certeza do presente.
Logo, já não sabia se o último mês havia sequer acontecido.
"Olha, eu não conheço mais nenhum órfão de incêndio com o combo do meu sorriso e personalidade cômicos."
Ele respondeu, rindo.
"Quer dizer, nenhum não-fictício."
Acrescentou.
Lentamente, Daniel inclinou o corpo para frente, puxando o amigo para um abraço desconfortável e estranho, porém de coração. Leo fechou os olhos, envolvendo Daniel com os próprios braços enfaixados e o trazendo mais para si.
Seus peitos se encontraram conforme Daniel escondia o rosto no pescoço enfaixado do outro, afundando o nariz em sua nuca.
"Pronto. Acabou.
...Eu só fiquei, tipo, uma semana sumido, não precisa de tudo isso.
E você veio mais rápido do que eu achei que fosse vir, sinceramente."
Daniel soluçou, permitindo que as lágrimas corressem sem freio por suas bochechas.
Sentia o calor de Leo, sentia a pele contra o rosto, podia cheirar um perfume estranho de eucalipto e chá de camomila.
"Eu demorei. Demais."
Respondeu entre soluços.
"Não tem problema. Eu tô bem."
Leo afirmou baixo, afagando os cabelos de Daniel e penteando cada mecha escura com seus dedos. Respirava calmamente, apertando-o com o máximo de força que conseguia.
"Eu demorei, Leo. Eu demorei pra te procurar."
Daniel repetiu, engasgando-se nas lágrimas e catarro.
Leo aconchegou o amigo em seu abraço. Então suspirou.
"'Cê veio na hora que era pra vir. Não tem problema."
A voz de sorriso não parecia mudar, apesar de cansada e mais rouca que o habitual.

Daniel abriu os olhos cor azul-elétrico, que ardiam conforme piscava para afastar as lágrimas incessantes. Levou o olhar até o rádio relógio ao lado da cama. 3:15 da manhã.
Apertou o travesseiro que abraçava de maneira firme, sentindo-se emocionalmente drenado.
Havia chorado enquanto dormia mais uma vez, apesar de não se recordar de seu sonho.

No próximo invernoWhere stories live. Discover now