Capítulo 37

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— É tudo culpa sua Angel!

A frase se repetia.

Os gritos ensandecidos se repetiam.

O rosto apagado, as olheiras e bolsas embaixo dos olhos, o moletom velho, até o cheiro se repetia.

Era como um looping eterno.

Inúmeras vezes a mesma lembrança. O mesmo pesadelo.

Como aquele filme de terror mal dirigido que havia comentado.

Uma merda gigante que infelizmente já era prevista de acontecer.

Se é tudo culpa minha? Há controversas.

As vezes penso que não, que Letícia iria ficar maluca desse jeito sabendo sobre nosso envolvimento desde o início. Assim como tem horas que penso que tudo poderia ser diferente.

É um inferno viver no maldito “e se”.

Quando os policiais chegaram ela me amaldiçoou em mil nomes, me jogou mil pragas enquanto apontava aquela porra de cutelo na minha direção.

— Você é uma puta Angel, acabou com a minha vida, fodeu com tudo — dessa vez ela estava mexida, as lágrimas de crocodilos escorrendo dos olhos, mas sem se abalar com as duas armas apontadas na sua direção.

— Já disse para abaixar o facão — o policial repetiu pela segunda vez.

Escondi o rostinho da minha filha protegendo-a daquela cena e suspirei aliviada quando o Otávio se murou na minha frente.

— Olha lá, tem até um protetor, que bonitinha...

— Senhora, não vou falar de novo — o policial a interrompeu, visivelmente sem paciência para o teatro.

— Se não me falha a memória você dava para esse também, é adepta ao poliamor agora? Além de roubar um homem você quer dois?

— Otho — sussurrei assustada, o choro incessante da Clarinha no meu ouvido enquanto sentia algumas contrações na barriga.

— Senhora...

— Olha para mim Angel — seu chamado me fez dar um passo para desviar dos músculos do moreno que me protegia. — Eu quero que se lembre... Todos os dias, quando for dormir, ao acordar, e principalmente quando estiver feliz...

Gritei por Deus quando a vi apontar o cutelo para o seu próprio punho.

— Minha filha... — o choro, o pavor nos olhos da tia Su iria ficar grudado na minha mente.

— É tudo culpa sua Angel, não se esqueça — deixou bem claro antes de avançar para se cortar.

Foi nesse instante que fechei os olhos.

Ouvi um disparo.

Os gritos. Todos misturados. Praticamente impossível de distinguir. Tia Su, Clara, as vozes desconhecidas dos policias, braços ao meu redor, a proteção.

Era tudo demais para mim. Foi demais.

— Ela... Ela... — chorei sentindo a dor no peito, no coração, na barriga, minhas filhas... Meu Deus minhas filhas... — Minhas filhas, Otho, minhas bebês — me ouvi falar.

Realmente me ouvi dizer, como se fosse uma telespectadora do momento, senti o sangue escorrer, o corpo amolecer, a voz de desespero do Otávio, provavelmente apavorado para pegar a Clara e eu, nós... Meu Deus, minhas filhas...

Não sei dizer por quanto tempo apaguei, mas foi o suficiente para a cena se repetir mil vezes, o suficiente para os gritos de horror e as acusações grudarem no meu subconsciente.

Eu suspeito realmente nunca esquecer dessa merda toda.

— Vida — eu reconhecia a voz, claro, poderia se passar quanto tempo fosse e eu o reconheceria.

— Amor... Minhas bebês... Eu... — ouvi o chiado pedindo silêncio e só consegui abrir os olhos quando o peso do seu rosto estava sobre mim. — Emerson, elas...

— Elas estão bem amor, está tudo bem — prometeu enquanto eu só era capaz de encarar o teto branco.

“— É tudo culpa sua Angel!”.

Estava no hospital, isso ficou óbvio.

Ouvia o bip, conseguia sentir as agulhas na minha pele, a garganta arranhando e as pernas meio moles.

Levei minhas mãos até a barriga e quando a toquei senti minhas meninas mexendo.

Não era mentira, elas realmente estão bem.

— O que? A Letícia...

— Me desculpa amor, me desculpa, eu nunca vou me perdoar, tudo poderia ter sido diferente — suas lágrimas molhavam o roupão do hospital e eu levei meus dedos até seus cabelos, massageando-o para se acalmar.

— Se você estivesse lá seria pior — consegui dizer com a voz rouca, um pouco forçada. — Ela...

— Está viva — garantiu levantando-se para me olhar nos olhos.

Aqueles olhos. Nossa, como eu amo esses topázios.

— Viva? — perguntei confusa, agradecendo por não ter visto toda aquela cena horripilante.

— Sim, antes que ela se matasse um dos policiais reagiu e atirou na perna, do lado que segurava o cutelo, então ela o jogou no chão antes de conseguir o suicídio, chegou a se cortar, mas vai viver muito ainda.

“— É tudo culpa sua Angel!”. 

Ainda bem que estava viva. Pelo menos essa culpa eu não carregarei.

Me recuso a carregar.

— Amor — chorei de soluçar, sentindo minhas meninas como se fosse meu mundo. — Clara?

— Ela está com o Otávio na minha casa, estamos todos bem. Me desculpa por não estar lá quando você precisou — chorou passando a mão na minha, entrelaçando-as.

— Você não poderia imaginar — levei meus dedos até seu rosto e os enrosquei na barba que eu tanto amo. — Ainda bem que nada de pior aconteceu — suspirei selando nossos lábios.

— Letícia contou para os policiais onde o Peterson está, o neném já está a salvo também.

Fomos interrompidos pelo médico que entrou na sala, sorrindo com uma prancheta nas mãos.

— Que bom que está acordada senhorita Duarte, é uma mamãe muito guerreira, em? — falou simpático deixando a prancheta de lado para vir me examinar. — Passou por um trauma muito grande, sei que como médico não posso dizer isso, mas teve muita sorte, vocês três estão muito bem e sua saúde é realmente de ferro.

— Quando vou poder ir para casa?

— Acabou de acordar mocinha, vai ficar de observação por mais vinte e quatro horas e nada de esforço nem fortes emoções pelos próximos meses. Recomendo repouso absoluto para que não tenha mais sangramentos ou um possível parto prematuro, além do acompanhamento regular até o parto.

— Não se preocupa doutor, vamos contratar uma enfermeira para ficar vinte e quatro horas de olho nela, posso até ver um médico para ir até a residência e... — Emerson começou com seus devaneios rotineiros e nem deixou que o doutor continuasse as recomendações.

— Calma pai, é tudo por prevenção.

Ri limpando as lágrimas de alívio, feliz demais por todo o surto ter acabado bem.

Quando o médico saiu pedi para que meu noivo fizesse uma ligação de vídeo para o primo, precisava ver minha filha.

— Olha se não é a mamãe mais bonita desse mundo — a voz do moreno reverberou pelo quarto e seu rosto bonito preencheu a tela.

— Mal acordei e já está me bajulando? Quero ver minha filha.

— Olha como você fala com a minha mulher Otávio, não se esqueça de como posso deixar esse seu narizinho — o ogro reclamou do meu lado.

— Sorte que estou com a minha afilhada e posso fazer uma boa negociação pela troca do meu nariz intacto — revirou os olhos.

— Coloca logo ela na tela — reclamei incomodada, precisava vê-la, mesmo que por uma tela de celular.

— Então, sobre isso... — ele levou a mão na nuca e meu coração acelerou.

— O que fez com a minha filha Otávio? — me ajeitei na cama, já desconfortável com o tempo excessivo na mesma posição.

— Angel, primo — o seu olhar desviou para atrás da câmera.

— Eu juro que vou matar ele — falei para o Emerson que segurava o celular para que nós dois nos enquadrássemos na chamada.

— Mas você nem sabe o que aconteceu — o moreno estava enrolando.

— Não importa, você é um homem morto.

— Não é nada demais tá legal, é que estávamos vendo uns vídeos no Youtube e a mãe da menina cortou o cabelo dela, aí achamos que era uma ótima ideia...

— Achamos? — levantei uma sobrancelha.

— Sim, eu e a Clara — sua feição era como se fosse uma coisa óbvia.

— Você e uma criança de dois anos acharam uma boa ideia? Quero ver minha filha agora — mandei aumentando o tom da voz.

Ele deu um sorriso sem mostrar os dentes e virou a câmera frontal para a traseira.

Segurei a risada quando vi a minha filha, tive que segurar meus lábios presos para que não começasse com uma crise de riso, mas todos os meus esforços foram por água abaixo quando o Emerson começou a gritar com o Otávio reagindo negativamente ao corte moderno da nossa bebezinha.

— Tá maluco Otávio? Eu confio minha filha a você, e você deixa ela parecendo o Beiçola? — gargalhei pela crise do meu noivo e pela comparação ao personagem da Grande Família. — Por que está rindo Angel? Ela nunca mais fica com você Otávio, está me ouvindo?

Papá — Clarinha sorriu banguela olhando na direção do celular. — Cadê tiu? — ele virou a câmera frontal e sem dizer nada apontou na direção da nossa filha, ela estava há poucos passos de distância dele.

— Filha, o que o tio fez com você? — Emerson estava inconformado, em menos de um minuto já puxou três vezes os fios grossos da sua barba e a expressão dos seus olhos era de pura agonia.

— Ah, para amor, nem está tão ruim. Oi princesinha da mãe — ela ficou toda animada nos vendo e se levantou do chão para caminhar correndo em direção ao celular.

Seu cabelo estava um batidinho bem curto, acima das orelhas, os fios castanhos ralos deixava o corte ainda mais panelinha e por mais que eu tentasse não rir estava muito engraçado.

Sodadi mamã — Clara pegou o celular na mão e começou a chorar, o que fez meu riso cessar completamente e em instantes me juntei a chorar junto com ela.

— Mamãe também está morrendo de saudade filha, daqui a pouco você já vai estar com a mamãe.

— E com o papai, e ai vamos juntos ao enterro do seu padrinho — Emerson completou passando seus braços pelo meu pescoço, juntando nossos corpos, me aquecendo e reforçando que estava ali.

— Qual é Messinho, nem está tão ruim — ouvimos a voz do Otávio e a câmera se mexeu porque ele pegou a Clarinha no colo. — Agora vamos voltar a brincar de pintar os cachorros, não é? — sua voz estava mansa e Emerson cerrou os olhos para ele.

— O que está fazendo com os meus cachorros? — o doutor rosnou feito um.

— Ah primo, você vai adorar — vimos eles caminhando, o celular ainda mostrando nossa filha, suas mãos pareciam estar apoiadas no tio e só conseguíamos ver o queixo deles se movimentando. — Da aqui pro dindo — pediu pegando o celular, ele virou a câmera novamente e aí que o meu noivo pareceu surtar.

— Eu juro... Ah seu filho da...

— Olha o palavrão — o moreno brincou gargalhando, desceu a Clarinha no chão e a vimos correr em direção ao gramado.

Tinha uma mesinha de brincar com a lousa de pintar, várias tintas coloridas e os três Bull terrier do meu marido, de brancos estavam parecendo o arco íris.

— Quero só ver quando você tiver filhos, vai ser um pai totalmente sem limites — constatei rindo, sequei as lágrimas de saudade e acariciei minhas sementinhas que cresciam tranquilas.

— Elas vão me amar, as crianças me adoram — garantiu convicto.

— Não tenho dúvidas.

— Mano do céu, Bud, Cacau, Milo... O que fizeram com vocês — o ogro ainda reclamava do meu lado. Dramático como sempre.

Juntei nossos dedos como ele tinha feito a pouco tempo, torcendo para que se acalmasse.

Os cachorros estavam de bem com a brincadeira, pareciam se divertir enquanto a Clara andava correndo com o pincel atrás deles.

Bud andava a passinhos curtos olhando para ela que quase o alcançava, Milo lambia a tinta do próprio corpo enquanto a Cacau o ajudava na tarefa árdua.

— Fica em paz primo, cuida da Angel que eu cuido da princesinha aqui. Da tchau para os papais meu amor.

Clarinha nem estava ligando para nós, como se não tivesse chorado pouco tempo atrás, apenas acenou para o padrinho e o Otávio ainda teve a ousadia de virar a câmera para nos mostrar a língua antes de desligar.

— Ela nos ignorou — o pai estava com a boca aberta e o queixo caído, bem no estilo dramático Emerson Gupper de ser.

— Estamos ficando para trás, melhor ir se acostumando, a tendência é piorar — dei um beijinho na sua boca aberta e tentei me levantar, sendo barrada por ele. — Preciso ir ao banheiro — reclamei e só assim me deu passagem.

— Vou com você.

— Ah tá — ironizei dando passos mais rápidos para chegar primeiro. — Sai daqui amor, não preciso de babá para fazer xixi.

— Todo o cuidado é pouco — ouvi ele falar assim que fechei a porta.

— Qualquer coisa eu te grito.

Ele me esperou do lado de fora, ficamos juntos até o médico me liberar e ele entendeu quando pedi para não irmos até o meu apartamento, na verdade eu nunca mais quero nem lembrar daquele lugar, vou vender o mais rápido possível. A preço de banana se for preciso.

Quando chegamos na casa do Emerson fomos recepcionados com a maior festa.

Clarinha estava com um vestido da princesa Elsa e com uma peruca que disfarçava os cabelos curtos.

Otávio comprou comida pelo aplicativo para um batalhão inteiro comer.

Emerson chegou a dar um soco no braço do primo pelo corte de cabelo da neném, mas depois eles se abraçaram e meu noivo o agradeceu por cuidar dela, independente das travessuras que aprontaram.

Fiquei surpresa quando vi a Jana, estava vestida na sua usual calça jeans e camisa preta, seu rosto se destacava em um vermelho vivo bem parecido com um pimentão — e nem quero imaginar o que a deixou assim, provavelmente o moreno safado cheio de músculos que estava a poucos passos de distância.

Foi uma delícia, é realmente muito bom estar com quem amamos e nos sentimos bem.

A casa estava mais vazia que o normal, os principais pertences o Emerson já tinha levado para a nossa casa e hoje a noite mesmo nós já nos mudamos de vez.

Decidimos não vender aqui, para quando precisarmos estar na cidade ter onde ficar — além de que no futuro nossas filhas podem querer vir morar aqui, quem sabe (torcendo para que não!).

Eu estava sentada de lado no sofá com as pernas sobre as coxas grossas do Emerson, Jana sentada no chão junto com a Clara e o Otávio na poltrona entre nós.

Eu estava só no suco de melancia enquanto o restante dos adultos já estavam bem alegrinhos.

— Mas é sério Jana, você devia vir com a gente — o meu ogro a convidou depois de listarmos os prós e contras da mudança.

Ela teria moradia por quanto tempo quisesse, além do emprego garantido. Ela não tem família e só estaria deixando os amigos e conhecidos, seria um bom recomeço para ela também. Caso quisesse.

— Tá, tá, vou pensar sobre isso — prometeu dando uma golada na cerveja.

— Seria ótimo, vizinha — Otávio alfinetou, deixando-a vermelha como sempre. — Posso ficar sem açúcar qualquer dia.

— Para de besteira, a menina está quase rosa — ralhei com ele. — Mas é sério Jana, gostaria muito que fosse com a gente, temos um cantinho de hóspedes que fica perto da piscina, podemos reformar e aumentar para que fique bem acomodada.

— Não sei se seria prudente — ela mordeu o canto da boca, mas era nítido que estava ponderando.

— A oferta está dada, a Clara te ama e tenho certeza que nossas meninas também se apaixonarão por você.

— Não tem como não se apaixonar — ouvi Otávio resmungar baixinho, olhei para Emerson que me devolveu o olhar cúmplice.

— Estou grata de verdade, prometo pensar no assunto.

Pelo nível de teor alcoólico do meu marido decidimos ir para Sorocaba somente pela manhã e quando finalmente partimos eu senti um alívio enorme no peito.

“— É tudo culpa sua Angel!”. 

Nada me abalaria. Finalmente Letícia estava no passado e esse é o primeiro passo para o nosso futuro.




Estamos na reta finaaaaal desse casal ardente  🔥🔥🙏

Mas reta final não é final emmm

Bora papear 😍🔥🔥


Ardentemente SuaWhere stories live. Discover now