Uma porta leva a muitos lugares

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     Uma vez sua avó lhe disse para fechar as portas do armário, quando indagou o porquê, Margô recebeu a mesma reposta de sempre: "Os Antigos dizem que é melhor assim".
     Margô sempre foi cheia de perguntas e a avó, vazia de respostas. Ela não se lembrava bem de quando deixara de perguntar, de quando deixara de contestar, mas ao sair de casa naquela manhã, ela sorriu ao deixar uma porta do quarda-roupa aberta.
     A vida a deixou rebelde, pensava consigo mesma. Em seus vinte anos, Margô se orgulhava de sua teimosia nata. Sim, ela iria para outra cidade. Não, não iria prestar direito. Sim, trabalharia para pagar os próprios estudos. Não, não precisava de ajuda. Nunca aceitou ajuda. Orgulho? Nem ela saberia dizer o que motivava seu comportamento. Talvez tivesse medo de relaxar demais, de baixar sua guarda. Não, não precisava mesmo de ajuda.
    Ela estava se saindo bem, conseguira um emprego de secretária, fazia cursinho comunitário durante a noite e morava num quarto de pensão. Uma pensão bem velha e decrépita com uma dona mais velha e ainda mais decrépita. As portas do velho quarda-roupa faziam questão de ficarem escancaradas nas dobradiças enferrujadas, era mais fácil que ficassem assim. O máximo que aconteceria era ter suas roupas cobertas de pó. O pensamemto a fez estremecer, fecharia a porta da próxima vez. Talvez os Antigos só não gostassem de coisas empoeiradas...

     Era tarde para voltar, Margô já conseguia ver a fachada do prédio da associação. Engraçado, fugir do direito e acabar rodeada de advogados. Sua avó teria rido, mas não mais. A velha batera as botas há três anos deixando tudo para a única neta: ela. Foi praticamente como pintar um alvo em suas costas, mas Margô ficou feliz. A avó sabia que aquele dinheiro seria usado para comprar sua liberdade. E ali estava ela. A terrível e amarga, ainda que doce, liberdade. Pelo menos depois das 18 horas, porque, naquele momento, ela precisava trabalhar.
     O sino da porta soou alto demais e sua amiga Ana se virou para cumprimentá-la:
     _ Bem na hora, como sempre.
     _Desculpe decepcionar_ zombou. Ana sorriu e indicou a cadeira ao seu lado.
     _Alguma hora você vai se dar mal. Custa chegar um pouco antes? _ Margô assumiu seu posto ao lado da amiga e remexeu a papelada do dia anterior. Seria outro dia corrido. Suspirou.
     _ Pelas minhas contas, é um pouco menos de sono. Não tenho como dormir menos do que já durmo _ resmungou analisando as fichas. Seus olhos doíam de estudar até tarde. As letras pareciam embaçadas e sem sentido.
     Ana dividiu sua pilha em duas ficando com uma das metades.
     _ Fica me devendo um café _ avisou.
Margô sorriu em resposta. A amiga sempre a ajudava com seu trabalho e disfarçava com uma troca nada justa. Sua colega sabia lidar com seu gênio.
     Ana era bem mais velha e experiente que ela e, nesses últimos meses, vinha sendo essencial no aprendizado de Margô. Ela lhe ensinou tudo, desde transferência de chamadas até organização dos papéis. Ana estava na casa dos 40 e trabalhava ali há pelo menos 10.
     _ Como foi o curso? _ A amiga continuou já terminando dois dos 5 documentos. Seu cabelo loiro estava grisalho em certos pontos, as rugas estavam mais proeminentes. A doença da filha vinha afetando-a bastante. Margô sabia que o câncer voltara a aparecer. Seria um dia de conversar para distrair, percebeu e entrou no jogo.
     Margô contou até os mínimos detalhes de suas aulas e entre leituras e ligações, as duas chegaram ao horário de almoço.
     Como de costume, ambas compartilharam uma marmita comprada e comeram na pequena sala de descanso que ficava atrás da recepção. Os donos eram ricos o suficiente para pagar aquelas mordomias (sem falar nos móveis estofados), só não pareciam ter dinheiro para salários decentes.    Suspirou entre garfadas. Aqueles pensamentos só geravam dor de barriga.
     Seus ombros doíam de tensão quando seu expediente chegou ao fim. Margô se despediu de Ana e voltou para casa. Precisava tomar um banho e se arrumar antes de subir o morro até o curso. Não havia muito tempo e ela preferia não pegar atalho pelos túneis. Não era um bom horário para ser mulher.
     Seus pés doloridos agradeceram a água quente relaxante e seus ombros se soltaram um pouco. Exausta pela semana agitada, Margô mal podia esperar o dia seguinte. Sábado! Finalmente sábado!
 

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