Gisela e Thaís

60 7 2
                                    



Encontram-se no elevador e não puderam evitar o olhar de curiosidade.

Thais, vestida com roupas ordinárias e muito curtas, olhou a jovem com admiração. Gisela, sob sedas e echarpes, olhou-a com um misto de resignação e aversão. Esperando que a moça ficasse lá em seu canto. Assim, quando as duas fizeram o mesmo gesto de apertar o botão do andar térreo e as mãos se tocaram, Gisela, sem graça, puxou a mão rapidamente, como se tivesse levado um choque.

- Também vai descer? – Thaís perguntou, sem ter percebido a intenção no  gesto da outra.

- Isso, também vou para o térreo – Gisela disse discreta, restabelecendo o silêncio. Não era de falar com os vizinhos naquela espelunca que chamavam de prédio. Não ia começar agora.

Thaís era uma menina ainda, não chegando aos vinte anos completos. Não sabia falar corretamente uma porção de palavras, porque saíra muito cedo da escola, e também não entendia de vários assuntos. Conheceu a rua muito cedo, aos treze anos, fugindo de um padrasto que não a olhava como um padrasto deveria olhar e de uma mãe cega que não enxergava esses olhares que lhe eram direcionados.  Com esta idade, pela primeira vez, dormiu tendo como teto apenas um céu cravejado de estrelas e como cobertor o medo e a indiferença das pessoas.

Fugiu de uma situação para cair em outra. Logo foi aliciada e, acreditando na promessa de uma mulher mais velha, perdeu a inocência, a liberdade e a alegria. Caiu nas garras de homens de todos os tipos. O horror e o torpor que a acometeram nos primeiros dias, foram dando lugar ao conformismo. E, quando menos se esperou, acostumou-se. Entre os homens, tinham até alguns que lhe eram confidentes. Pagavam apenas para falarem e serem ouvidos. Algo que não conseguiam em casa.

- Uma vez nas ruas, sempre nas ruas – dizia tristemente, esclarecendo que o dinheiro "fácil" era um vício fortíssimo que mantinha as mulheres atadas àquela ocupação e de "fácil" mesmo não tinha nada. Por esse motivo, muitas, como ela, se sujeitavam, tendo que rir, quando a vontade era a de chorar.

Era velha conhecida do medo. O medo da polícia (a Claudete e a Ivone não tinham boas recordações dos homens da lei); o medo da violência e, por fim, o medo das doenças, que fazia dela muito prevenida. Se o cliente oferecia um pouco a mais do combinado, já desconfiava e ia barrando toda e qualquer invencionice que depusesse contra a sua saúde.

Não admitia muitas coisas, como ter mais de um cliente simultaneamente ou sair com mulheres. Isso fazia com que as outras meninas a olhassem de lado e cochichassem às suas costas: "Essa Thaís não vai durar muito tempo nisso não. Será que não vê que exige muita coisa? Onde já se viu ter tantas vontades? Um dia, um desses homens perde a paciência, aí adeus Thaís. Eis, então, mais um ponto para disputarmos".

Thaís, na pouca inocência que lhe restara, achava que aquele era seu destino, ao qual era impossível fugir. Logo, tinha que se sujeitar a ser chamada por mil nomes; satisfazer os outros, sem nunca ter tido tempo de pensar em seu próprio prazer; realizar fantasias que lhe pareciam pesadelo;  estar pronta para correr toda vez que a polícia aparecesse e ficar longe de confusões com as mulheres mais velhas, afinal, elas se achavam no direito de ditarem o que podia ou não ser feito. Cafetões, como se dizia na gíria, felizmente só tivera um e era um homem tão ruim com "suas moças", que não foi surpresa quando a morte lhe apareceu pela mão de uma delas.

Ela nem percebia o quanto ainda era bonita e o quanto se parecia com as outras mocinhas que caíam na mesma profissão para evitar, como ela, morrer de fome e de frio. Mas, podia ser pior, pensava sempre que via algumas que, mal tendo quinze anos, já estavam grávidas. Crianças que, às vezes, nem nasciam e se nasciam iam engrossar a fila dos excluídos.

Estava tão acostumada àquela vida que não se impressionava ao ser apontada na rua, ou, então,  olhada com desdém pelas mulheres sérias casadas com quem cruzava. Aquelas mulheres que traziam os olhos cheios de preconceito não viam, ou não queriam ver, que muitos de seus maridos é que a mantinham ali: os senhores respeitáveis durante o dia eram, quando a noite chegava, apenas seus clientes.

Gisela, ao contrário, se dava valor. Sempre aprendeu que a beleza era uma moeda de troca e nunca se esqueceu disso. Muito boa aluna no colégio, sua matéria preferida sempre fora a matemática. Mas, a vida sem perspectivas, fez, logo que saiu da adolescência, com que deixasse a casa de sua família para alçar voos mais altos.

Era bonita, jovem e atenta ao desejo que fazia surgir nos homens, principalmente nos mais velhos. Eles ofereciam presentes para ter dela a atenção que desejava e ela se deixava presentear. Logo, parar em uma agência de acompanhantes fora questão de tempo. Caminhando seus próprios passos entrou em uma dessas agências. E só depois de saber todos os prós e contras  e de se certificar da segurança do lugar é que aceitou o convite para fazer parte do casting. Em momento algum achou que aquilo significasse se sujeitar. Ao contrário, os homens que deveriam se sujeitar a seus caprichos se quisessem sua companhia. E seus caprichos eram caros.

Assim, não tinha motivos para ser triste. Guardava todo o dinheiro que ganhava e sua mudança dali já estava com data marcada. Ia dizer adeus àquele lugar que chamara de casa por dois anos e pretendia não olhar para trás, quando se instalasse em um flat no centro da cidade. Este fora mais um mimo de um cliente: garantir que ela morasse em um local de fácil acesso e no qual lhe pudesse fazer discretas visitas.

Fora inconformando-se com o "destino" de balconista em uma loja que, literalmente, Gisela se jogara nessa vida e não se arrependia. Em apenas dois anos, já possuía um carro, estava comprando seu apartamento e ainda conseguia ajudar sua família para a qual enviava dinheiro religiosamente, todo dia quinze. Seus pais, aliás, nunca questionavam de onde vinha a bolada, apenas a aceitavam, já que não tinham condições para abrir mão da ajuda.

Na polícia, ao invés de inimigos, tinha clientes. E conhecia o alto escalão, sendo muito bem quista neste meio. Assim, quando precisava da polícia, bastava um telefonema e tudo estava resolvido.

Ninguém apontava por ela, nem condenava suas roupas. As mães adorariam tê-la como amiga de suas filhas, pois ela se parecia com as outras amigas delas. Não imaginavam que seus maridos pudessem ser seus futuros clientes. Tinha bons modos e elegância, e seu jeito de menina certinha cativava as pessoas, conferia-lhe todas as vantagens destinadas à pessoas bem nascidas.

Quando o elevador parou no andar térreo, as duas moças já haviam se estudado por tempo suficiente. Gisela sustentava o olhar cheio de pena e de superioridade. Thaís, em seus olhos tristes, pensava que gostaria de conhecer melhor seus vizinhos. Que havia ali, naquele prédio, pessoas distintas como a moça com quem dividira o elevador. Em outra vida, poderiam ter sido amigas.

Mal sabiam que tinham muito em comum, com uma única diferença: o futuro que cada uma tinha para galgar. Gisela poderia encontrar um homem rico que a fizesse exclusiva ou, então, como em um conto de fadas, deixasse a família e se apaixonasse por ela, cuidando de bancar a manutenção desta paixão. Thaís, por sua vez, talvez conseguisse um ponto melhor ou, então, chegasse, como a Celeste, a abrir um bordel.

O futuro era incerto. A única certeza era a de que não se encontrariam mais. Gisela sairia dali e continuaria com seus modos comportados, com sua sedução medida, com sua ambição desenfreada. Seria sempre a bonequinha de luxo. Thaís permaneceria conformada, não vendo a alegria em nada, apertada em suas roupas minúsculas, fazendo ponto na boca do beco. Lugar escuro, coberto de solidão, de resignação e de muito lixo.  

FugazOnde histórias criam vida. Descubra agora